O trabalho infantil em Fazenda Rio grande: entre a complexidade e as controvérsias

por Julius Nunes
O trabalho infantil em Fazenda Rio grande: entre a complexidade e as controvérsias

Fazenda Rio Grande está entre os municípios que mais recebem investimento para combater o trabalho infantil no Paraná. Causas ainda não são claras

Por Alana Dombrowski e Bruna Martins

Entre os municípios do Paraná que mais recebem recursos para o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) está Fazenda Rio Grande, o mais investido da Região Metropolitana de Curitiba. De acordo com o Portal da Transparência, o total destinado à ação Transferência de Recursos – PETI neste ano até o mês de novembro é de R$ 26.470,00. Para se chegar a este dado, basta acessar o portal, clicar no link “Outras consultas temáticas” e escolher a opção “Erradicação do Trabalho Infantil – PETI”. O valor é destinado a 50 famílias, que representam cerca de 0,06% da população do município, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como trabalho infantil qualquer atividade econômica realizada por pessoas abaixo da idade mínima permitida pela legislação e que, consequentemente, estão sujeitas às alterações negativas no desenvolvimento psicológico, físico, educacional, entre outros, seja imediatamente ou no futuro.

No Brasil, o artigo 7º, parágrafo XXXIII da Constituição define trabalho infantil como a atividade praticada por crianças e adolescentes menores de 16 anos (salvo na condição de menores aprendizes), em que haja exploração de lucro. Seguindo essa linha, o censo demográfico de 2010 divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) concluiu que o estado do Paraná conta com 24.564 meninos (6,7%) e 17.555 meninas (5,0%) de 10 a 13 anos em situação de trabalho infantil.

Atividades como comércio, agricultura, pecuária, produção florestal e pesca foram apontadas como as principais causas para essas estatísticas. Desse total, 377 crianças pertencem a Fazenda Rio Grande. Segundo dados do IBGE, são 229 meninas e 148 meninos que, no lugar de cadernos e brinquedos, ocupam os dias com trabalho ilegal.      Também de acordo com o IBGE, cerca de 83,8% dessas crianças são da área urbana e 16,2% da área rural. Além do trabalho precoce, a evasão escolar também marca a vida dos pequenos, já que 3,8% dos meninos e 6,7% das meninas não frequentam a escola. A evasão ainda é maior na área rural, com 17,1%. Na área urbana fica por volta dos 4,3%.

Fonte: Censo IBGE 2010

Fonte: Censo IBGE 2010

Desde 2006, o PETI passa por um processo de reformulação, dentro das normas do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), porém, a questão do trabalho infantil ainda é bastante complexa. Em Fazenda Rio Grande não é diferente.

O secretário municipal de Assistência Social, Trabalho e Habitação e também secretário municipal de Saúde, José Roberto Zanchi, reconhece que o município ainda precisa avançar na erradicação do trabalho infantil. No entanto, questiona a metodologia utilizada pelo IBGE. “Nós questionamos de maneira geral os números que o Censo registra como trabalho infantil. Temos certeza que há uma falha de metodologia. Às vezes, o entrevistador pergunta ‘seu filho trabalha?’, sem se importar se é legal ou ilegal. Todos os municípios questionam o IBGE”, afirma.

Ao ser questionado sobre o investimento aplicado pelo governo federal no município para o PETI, o secretário afirmou desconhecer as causas para a situação e, após algum tempo de silêncio, alegou que com a reorganização do programa (atualmente chamado de Sistema de Fortalecimento de Vínculos) pode existir uma desatualização dos dados.

Além disso, ele afirmou ainda que o município realiza uma contrapartida de investimentos em ações contra o trabalho infantil, cujo valor não consta no Portal da Transparência de Fazenda Rio Grande que, inclusive, tem seu último registro de contas públicas em fevereiro de 2013.

“Não sei onde você achou esse valor. Ainda temos que avançar muito dentro da perspectiva do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Essas famílias precisariam ser desmarcadas como beneficiárias do PETI e entrariam no Bolsa Família, já que os dois programas foram unificados. O sistema do Cadastro Único carece de atualização. Esses recursos que estão no orçamento são para ações que ajudam a erradicar o trabalho infantil. Quando assumi a secretaria, em 2009, havia 900 crianças marcadas como beneficiárias do PETI. Esse número caiu para 600 e, no último ano, 400 crianças. A ideia é reduzir mais”, diz Zanchi.

Portal da Transparência é incoerente

 O Portal da Transparência do Governo Federal apresenta algumas incoerências. Na maioria dos casos, a última atualização de retirada do valor repassado do PETI aos beneficiários é de maio. Embora alguns municípios ainda estejam se adaptando à unificação do Bolsa Família ao PETI, o portal continua divulgando a situação de pagamento do benefício de forma separada.

Em relação à unificação dos benefícios, o setor do Portal da Transparência que é responsável pelos programas sociais do MDS foi procurado. A informação dada foi de que se deveria procurar a unidade do munícipio em questão (o PETI é de responsabilidade federal e não municipal) e que o setor não atendia outros programas a não ser o Bolsa Família.

De acordo com a Caixa Econômica Federal, o valor a ser pago pelo PETI por criança que se encontra em área rural é de R$25,00, e em munícipios com menos de 250 mil habitantes. O PETI Urbano equivale a R$ 40,00 por criança, para municípios com mais de 250 mil habitantes. A regra não é seguida em Fazenda Rio Grande, que conta com uma população de 81.687 e, no entanto, os beneficiários recebem R$40,00, conforme dados do Portal da Transparência do Governo Federal.

Outro dado que não ficou claro no Portal da Transparência foi o divulgado no ano de 2005, ano de implantação do PETI. O valor investido naquele ano foi repassado apenas ao município (ao contrário dos anos seguintes, em que o valor é destinado diretamente aos beneficiários). No portal, não há maiores detalhes quanto à aplicação do dinheiro neste período.

 

A controvérsia dos órgãos públicos

 Além da própria Secretaria Municipal de Assistência Social de Fazenda Rio Grande não apresentar mais detalhes quanto a situação atual do trabalho infantil no município, outros órgãos públicos mostram versões distintas sobre a questão.

Em outubro deste ano, o Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR) divulgou à imprensa que o órgão recebe em média uma denúncia de trabalho infantil por dia. Desde 2010, foram totalizadas cerca de 2.635 denúncias. Os dados podem ser acessados no site do MPT-PR . De acordo com estes dados, até maio deste ano, o MPT deu início a 575 investigações, outras 470 ainda estão sendo acompanhadas, 903 já foram finalizadas e apenas 21 receberam ações ajuizadas por parte do MPT.

A procuradora Cristiane Sbalqueiro alega desconhecer o número de denúncias realizadas até o momento. Em relação a Fazenda Rio Grande ser o município da RMC que mais recebe investimento do PETI, ela atribui tal condição à pobreza. “Provavelmente Fazenda Rio Grande é o município que mais recebe dinheiro para combater o trabalho infantil porque é um dos mais pobres. O PETI serve justamente para compensar financeiramente as famílias para que as crianças não se sujeitem ao trabalho infantil”, afirma.

Entretanto, Fazenda Rio Grande apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) análogo ao dos demais municípios da Região Metropolitana de Curitiba, com 0,720. A renda per capita do município, que é de R$ 677,31, também não difere muito da média de todos os municípios da RMC, que é de R$ 629,58. A partir daí, justificar a abrangência do PETI em Fazenda Rio Grande com a pobreza se torna contraditório.

A procuradora ressalta ainda que o MPT busca oportunidades de aprendizagem para os adolescentes com idade a partir de 14 anos, o que se configura como uma alternativa ao PETI.

Sobre a situação do trabalho infantil de forma geral, ela acredita que a situação está melhorando. “Eventualmente vemos uma criança mendigando ou vendendo bala. E, nesses casos, tentamos descobrir quem está por trás dela, mas isso também está diminuindo muito. Nós já temos um grande avanço. É muito mais difícil ver crianças trabalhando com bandeiras de propaganda política e panfletagem do que há 10 anos, por exemplo”, diz.

 

Trabalho infantil no ambiente doméstico, fiscalização e economia

Quando questionada sobre as ocorrências de trabalho infantil no ambiente doméstico, a procuradora analisa maiores dificuldades e, sobre as denúncias, acredita que o país é tolerante com a situação. “Geralmente, os vizinhos não denunciam o trabalho doméstico porque ele é muito difícil de ser visto. Denúncias sobre o trabalho infantil são raras, até porque o Brasil é muito tolerante. Além disso, o número de auditores fiscais é baixo e o que acontece é que nós temos um paradigma neoliberal pelo qual se entende que não é prioritário aumentar o número de fiscais”, finaliza.

De acordo com o Censo 2010, 32,3% das crianças que foram constatadas em situação de trabalho infantil executavam atividades mal definidas. Cerca de 3,0% trabalhavam em atividades agrícolas e 2,4% no setor do comércio, reparação de veículos, etc. Com relação aos vínculos empregatícios, 3,5% das crianças constavam como empregadas, 11,0% como autônomas e a maior parte delas, 54,1%, como não remuneradas.

O comércio é a atividade mais significativa na economia de Fazenda Rio Grande (7.061 pessoas ocupadas), seguido das Indústrias de Transformação (6.169 pessoas) e da Construção Civil (4.352 pessoas). Ainda há as atividades mal especificadas, executadas por 4.490 pessoas. Estes dados foram divulgados pelo Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes).

Para o diretor do centro de pesquisa do Ipardes, Julio Suzuki, o trabalho infantil não se relaciona totalmente à economia. “A questão do trabalho infantil em Fazenda Rio Grande não tem necessariamente ligação com a estrutura econômica. Aliás, eu diria que a economia tem um efeito indireto. Há uma reflexão muito mais de cunho social. Talvez haja extratos sociais de baixa remuneração que leva ao trabalho infantil”, diz.

Suzuki ainda atribui a questão do trabalho infantil à agricultura familiar e questiona a metodologia do IBGE. “O trabalho infantil, não só em Fazenda Rio Grande, mas no Paraná, está ligado a duas atividades: a agricultura familiar e o trabalho doméstico. O IBGE trabalha muito com a questão da faixa etária e a definição do trabalho infantil meramente por um critério etário e um tanto quanto incompleta”, finaliza.

Embora Suzuki fale da questão da agricultura familiar, esta não é a principal atividade executada em Fazenda Rio Grande, já que são apenas 819 pessoas ocupadas nesse setor, ou seja, aproximadamente 2,1% das atividades econômicas do município.

 

Número de auditores fiscais é baixo

A fiscalização do trabalho infantil no Paraná conta com órgãos como o Conselho Tutelar e a Fundação de Ação Social (FAS). No entanto, os auditores fiscais atuam basicamente de duas formas: por denúncia e por operação.

O coordenador do Combate ao Trabalho Infantil no Paraná, Eduardo Reiner exemplifica o processo de uma operação. “Recentemente, fizemos uma operação em municípios próximos a Curitiba, com baixo IDH e onde constatamos trabalho infantil. Quando encontramos o trabalho, damos um auto de infração à pessoa que está explorando, pedimos o afastamento ou mudança de função, verificamos o contrato do trabalho e quando se trata de menor, encaminhamos para assistência social do município e órgãos de aprendizagem”, conta.

No Paraná há cerca de 60 auditores fiscais. Deste número, apenas três são auditores do trabalho infantil, incluindo o próprio coordenador. Para Reiner, o número baixo de profissionais impacta na fiscalização. “O número de auditores caiu bastante. No Paraná, um número razoável seria de 400. Isso mostra um descompromisso do governo com essa classe, com a proteção do trabalhador, com a questão do trabalho infantil, do trabalho escravo. O próprio Ministério do Trabalho está sucateado. Eu, por exemplo, tenho poucos auditores a meu favor para fazer um trabalho mais efetivo”, afirma.

Fonte: Censo IBGE 2010 e Ministério do Trabalho e Emprego

Fonte: Censo IBGE 2010 e Ministério do Trabalho e Emprego

 

A pluralidade do trabalho infantil

Há cinco anos, o sociólogo Maurício Cunha realizou sua dissertação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social “Projetos de Vida: Família e Trabalho Infantil na Perspectiva dos Beneficiários de um Programa Social” no município de Fazenda Rio Grande. Durante dois anos, Cunha analisou, do ponto de vista antropológico, famílias com crianças que trabalhavam na rua e a conclusão da pesquisa o fez enxergar que há visões diferentes sobre o que é trabalho infantil. Naquela época, o número de crianças trabalhando era de 960, segundo ele.

“O que a pesquisa apontou é que as famílias tinham um olhar diferente das políticas públicas. Na legislação, o trabalho infantil é negativo. Mas no olhar das famílias, o trabalho infantil tinha um valor positivo para a própria educação da criança. Há um conflito de valores entre a lógica da comunidade e a lógica governamental. A pesquisa fala do Estado mudando a moral familiar com sua lógica”, explica.

Cunha já foi secretário municipal de Assistência Social de Fazenda Rio Grande e conta que fazer a pesquisa do ponto de vista de um ator social e não governamental foi interessante. Em essência, as famílias pesquisadas vinham do interior do estado em busca de emprego e não conseguiam se estabelecer em Curitiba. A maioria das famílias, de baixa renda, tinha empregos na construção civil e no serviço doméstico, o que acabava influenciando as crianças a contribuírem com a renda do lar.

Sobre políticas públicas como o PETI, Cunha as vê de forma positiva. “Existe muita controvérsia sobre o papel do Bolsa Família ou de que programas sociais para as famílias mais pobres geram acomodação. Mas o que percebi, pelo menos em Fazenda Rio Grande, é que isso de fato melhora a qualidade de vida. As famílias usam o recurso para empreender ações. Uma das famílias comprava doces e revendia, gerando uma margem de lucro sobre o valor inicial”, afirma.

No livro “Brasil Livre de Trabalho Infantil”, fruto do trabalho da ONG Repórter Brasil essa tensão entre Estado e sociedade sobre a concepção do trabalho infantil também é levantada. A lógica de diversos setores que apoiam o trabalho para crianças e adolescentes geralmente vem associada da justificativa de que o trabalho dignifica e forma a moral da criança. No entanto, especialistas e protetores enxergam que essa cultura não mede os efeitos negativos sobre a criança.

O próprio Maurício Cunha relata a inconsciência dos pais cujos filhos estão em condições vulneráveis em relação ao trabalho infantil já que, muitas vezes, não enxergam danos à criança pelo fato desta ajudar a compor a renda familiar. “Para aquelas famílias, as crianças não estavam fazendo algo ruim. A criança estar na rua não significa que ela seja da rua. Para famílias mais jovens, a visão era mais condizente com a lógica do Estado e a maioria achava o PETI bom”, conta.