No embalo do sucesso mundial de Buena Vista Social Club, música caribenha persiste em estado latente no Brasil

por Gabriel Romeiro Matthiesen
No embalo do sucesso mundial de Buena Vista Social Club, música caribenha persiste em estado latente no Brasil

Para o etnomusicólogo Edwin Ricardo Pitre-Vásquez, grupo cubano que visitou Curitiba no último dia 22 representa um resgate da memória dos ritmos afro-latinos do século XX 

Por Gabriel Romeiro Matthiesen | Foto: Divulgação

A migração de povos de toda América Latina para os Estados Unidos foi responsável pela formação de ritmos e grupos que se firmaram na cena musical mundial a partir dos anos 1930 e que seguem relevantes até hoje. O sucesso da banda Buena Vista Social Club, que se apresentou em Curitiba no último dia 22, é considerado um ponto de virada para música caribenha no mundo por representar um resgate da memória dos ritmos cubanos. Segundo o etnomusicólogo Edwin Ricardo Pitre-Vasquez, especialista em música afro-cubana, existe um enorme mercado potencial para essa música no Brasil, mas ainda limitado pela indústria fonográfica, que reproduz padrões isolacionistas criados pela ditadura militar. Às vésperas da turnê do Buena Vista pelo Brasil, Pitre-Vásquez conversou com a reportagem do Portal Comunicare.

Nascido no Panamá e atualmente professor da Universidade Federal do Paraná, Vásquez já realizou pesquisas e deu aulas em universidades do México, Brasil e Colômbia.

Portal Comunicare — Como ocorre a formação do grupo (Buena Vista Social Club)?

Edwin Pitre-Vásquez — A história que eu conheço é a contada pelo organizador e produtor do projeto Marco Antonio, que fez um levantamento de todos os músicos locais já idosos, maioria aposentados e entre 80 e 90 anos. Esse grupo seria formado para se juntar a um grupo chamado Africando, do Senegal, e montar um projeto a partir da interação entre esse conjunto e a velha guarda de Cuba. O que aconteceu foi que, com todos os músicos cubanos já ensaiando a dias seu repertório e só esperando os africanos em Havana, eles ouviram que o grupo que iriam receber não poderia vir por causa de um problema na documentação. Na mesma época Ry Cooder, um músico e produtor norte americano, estava circulando em Havana, e em sua visita aos estúdios da EGREM, gravadora estatal de Cuba, viu aqueles músicos parados e ouviu o repertório ensaiado. Interessado, ele propõe fazer um projeto paralelo para aproveitar o que já estava ali, e foi o que aconteceu. Cooder fez participações pontuais na música com sua guitarra e seu filho ficou na percussão com um darbak. Com a produção musical já pronta, ele percebe o potencial de expansão, então se junta ao cineasta Wim Wenders e ao executivo Nick Gold. Com um documentário em produção e a mixagem, masterização e distribuição encabeçadas pela World Circuit Records, já estava criado o produto Buena Vista Social Club.

PC — Você observa uma tendência adotada pelas gravadoras de resgate da música caribenha durante as décadas de 80 e 90? Digo isso pensando no caso de Israel Lopez (Cachao) e no grupo Fania All Stars.

EPV— Vejo dessa maneira: dentro das Américas, a migração sempre foi uma característica dos povos, uma constante histórica. Havendo essa migração, a cultura vai com essas pessoas. Essa cultura envolve alimentação, comportamento, vestuário, poesias, danças, músicas… Enfim, um imaginário de um povo que traz uma segurança identitária. A música pertence a todos. Todo grupo humano, quase sem exceção, gosta de música e usa a música como uma carteira de identidade. A música vai com essas pessoas em todas as migrações da América. Cachao, por exemplo, esteve entre os primeiros cubanos que foram aos Estados Unidos. Foi Cachao, Mario Bauza, Mongo Santamaría e muitos porto-riquenhos, colombianos, venezuelanos, panamenhos a até brasileiros. Com todas essas pessoas, vem suas músicas e seus músicos, todos se instalando nos EUA. Se olharmos só o caso de Nova York, veremos diversas bandas e orquestras multiétnicas se formando, agregando nacionalidades e ritmos. Por consequência, o público também tinha diversas nacionalidades, e para fazer essa intermediação entre público e artistas, surgem selos e gravadoras como a Alegre Records e posteriormente a própria Fania, que chegou a gravar dois discos por orquestra ao ano. Isso indica um consumo forte dentro dos EUA, mas também fora do país, uma vez que esses projetos se expandem e vão para as américas e para a Europa. Assim, se cria um mercado e se cria um movimento (um exemplo é a Salsa, que é confundida com o montuno cubano, mas na verdade é um movimento que surge em Nova York). Grande parte desse repertório é de matriz cubana, porque Cuba sempre teve uma imensa produção musical. Cuba desenvolveu gêneros musicais importantes como bolero, Cha-cha-chá, mambo e rumba. São todos gêneros cantados em espanhol, com instrumentos europeus como piano, violino e flauta, mas também com instrumentos de matriz africana como as tumbadoras, bongos, timbales, güiro, maraca e clave. O que acontece na própria formação do grupo é que Buena Vista era o nome de um clube de dança de Havana, do tipo que se via muito em toda América Latina nos anos 40 e 50, onde grande parte dos membros do grupo chegou a se apresentar antes do declínio desse tipo de espaço. A banda, então, é um projeto que traz uma temporalidade, espacialidade e intencionalidade (partes essenciais para pesquisa etnomusicológica) muito fortes, e coincide com um momento de tentativa de resgate da “velha música”, porque existia um sentimento de repetição e estagnação dentro da própria indústria musical do final dos anos 90.

PC — O documentário fala muito da fama especificamente dos cantores na ilha. Como esses músicos construíam suas famas e carreiras?

EPV — Basicamente, os cantores dessa época primeiro se vinculavam a uma orquestra, cantando um repertório gigante, com qualquer orquestra tendo pelo menos três cantores que se alternavam ao longo da noite. Durante muito tempo se utilizava a palavra inglesa “crooner” para definir esse tipo de cantor, que se diferenciava do solista. Esses cantores aos poucos eram selecionados para individualizar o trabalho, fazendo um repertório de preferência inédito. Isso aconteceu com cada um desses cantores. Eu te contei o caso de Compay Segundo [Máximo Muñoz], que cantava com seu parceiro Compay Primero [Lorenzo Hierrezuelo]. Eles formaram a dupla Los Compadres e gravaram repertórios inéditos com ritmos de Santiago de Cuba. Com a reunião do grupo, acharam Compay Segundo, que tinha composto Chan Chan, e transformaram a música no “carimbo” do Buena Vista, com ele mesmo cantando na primeira voz (o que não era comum, por isso o apelido) e tocando o tres cubano. Então se vê que o músico ou estava em orquestras ou em projetos com no mínimo dois cantores (como no caso do quarteto las D’Aidas, de Omara Portuondo), depois individualizando o trabalho.

PC — Por que você acha que a música caribenha desenvolveu tanto os sopros enquanto a música brasileira não adotou muito esses instrumentos?

EPV — Basicamente, a colonização espanhola, principalmente no caribe, trouxe instrumentos espanhóis. Isso acontece porque o principal ponto de extração de riqueza mineral para Espanha é o México, e Cuba está no meio desse caminho. Nesse processo, a ilha se torna um ponto de abastecimento. Com esse fluxo, Cuba passa a receber instrumentos, danças e costumes da metrópole. Isso também aconteceu em Salvador e no Rio de Janeiro. Como a etnomusicologia se encarrega de encarar todos os aspectos da música trabalhando com os códigos locais, se amplia a compreensão do conceito de música. Isso acontece com o caso do sopro e a concepção que se tem acerca disso. A verdade é que o Brasil sempre teve grupos de sopro, vindo das bandas militares. Era a música dos coretos. Isso se vê na prática no carnaval de Recife, onde não se toca samba, axé nem funk carioca, se toca frevo. Na estrutura do frevo, temos um grupo de sopro e três percussionistas apenas. A questão é que no rio se vê o desenvolvimento do samba muito ligado as cordas, mesmo assim tinham orquestras, como as do Maestro Severino Araújo, que era clarinetista e as bandas de Ruy Rey [Domingos Zeminian], todas nas tradições das “Ballrooms”. O que acontece é um corte significativo na música brasileira. Antes disso, se produzia música popular em espanhol, francês, italiano e alemão. De repente, nos anos 60, ocorre uma ruptura, um silenciamento. Eu moro no Brasil a 47 anos, e eu senti isso. Toda música em língua estrangeira foi cortada, deixando um vazio na indústria, que foi preenchido pelo rock e assim segue até os dias de hoje. Então, nos anos 60, as orquestras desaparecem e entram as guitarras. Por isso eu vou muito ao Recife, porque lá as orquestras de sopro são prioridade. Lá, existe o Museu do Frevo, que tem um estúdio de gravação em um dos andares. Se você chega com o seu projeto e ele for aprovado, ele é gravado de graça, o que é muito significativo. Há uma confusão de coisas nessa questão, agora é possível enxergar jovens voltando a ter interesse pelo sopro.

PC — Você enxerga essa transição, que você chama até de ruptura, como uma tendência de mercado ou algo maior, como um projeto político?

EPV — No Brasil, é um projeto político. Bem, dia 31 de março marca a data do golpe militar. Não entrarei muito nesse ponto, mas eu vivi isso. Cheguei aqui em 78, época de Ernesto Geisel, no Rio de Janeiro como músico panamenho. Todo show eu tinha que fazer uma lista do repertório de dos autores e levar na polícia federal para sofrer censura. Mesmo aprovado, ia sempre um agente para interromper o show se eu estivesse fora do autorizado. Penso que temos que falar disso porque existiu, aconteceu. Morei no Rio, em São Paulo, agora em Curitiba e sempre circulo pelo país e converso muito com as pessoas, e sei que eu não inventei, essas coisas aconteceram. Penso que é muito bom que surgiu o Buena Vista e que muitos artistas brasileiros se posicionaram sobre a música em espanhol. Vemos Chico Buarque, Caetano, Gil, Maria Betânia, Gal, Rita Lee, João Donato… Todos cantaram em espanhol e em ritmos latino-americanos. João Gilberto e Leny Andrade moraram no México antes de ir aos EUA. Tenho um projeto de pesquisa que se chama “O Caribe Estendido”, precisamente sobre como essa música ainda persiste no Brasil, por que ela existe, mesmo que me estado latente.

PC — Você poderia explicar a origem do tres cubano e como ele se relaciona com a viola caipira brasileira?

EPV — O tres é uma adaptação dos instrumentos de corda espanhóis da família do laúd árabe. A questão é que uma das coisas mais importantes que existe na música são os códigos. No caso do tres, ele foi adaptado para um código de sonoridade que agradasse o músico e o ouvinte. Esse mesmo instrumento, no México, chama-se jarana, que serve para tocar o son jarocho, que se relaciona com o fandango mexicano. Sei disso porque essa foi minha tese de doutorado: fui estudar o fandango mexicano depois de estudar o fandango paranaense, porque só se observa esses dois lugares com grande presença e tradição do fandango. No caso do tres cubano, o som dele é o que dá origem ao son cubano e a salsa, por causa da sua levada em arpeggio, pontuando com a palheta. Essa levada é o que se chama de montuno, que significa “música do mato” – uma música rural. Essa tradição se assemelha à música caipira. Chegando em São Paulo, estudei três “tipos” de cultura local: os caiçaras, que moram no litoral, os caiporas, que são da serra, e os caipiras, dos planaltos. Então, se vê que dependendo da forma geográfica do local, são grupos humanos distintos que habitam. Mesmo acontece em Cuba, com as pessoas do oriente da ilha, os grupos da serra maestra e os habitantes da capital. São três tradições distintas, e isso se reflete no tres: existe o tres de Santiago, que Compay Segundo toca e que é distinto do tocado em Havana. É por isso que o estudo aprofundado da música é importante, porque são nas diferenças e nas especificidades que se vê a verdade sobre culturas.

PC — Quase 30 anos depois do projeto original, existem novas tradições a serem abordadas pelo Buena Vista e outros grupos do caribe?

EPV — Claro, da mesma forma que há novas tradições no Brasil. Um ritmo importante de Cuba que se desenvolve dos anos 80 para cá chama-se timba, um novo jeito que adota a bateria, o baixo elétrico… Tem um toque pop, mas é bem dançante. Creio que Buena Vista, como representa música tradicional, não está tocando timba. Mas todos os lugares reformam a sua música. Falando com um amigo meu que é músico em Cuba, discutimos que o projeto Buena Vista é um projeto que deu certo, foi e é muito rentável para os músicos que participaram e para os empresários envolvidos. Tanto que hoje há dois Buena Vista: o que vem à Curitiba e o All Stars, que conta com membros originais. O que vem agora é uma segunda ou terceira geração de músicos.

PC — Como se entende a questão da origem compartilhada que todos esses ritmos têm?

EPV — Existe um livro chamado “De Son a la Salsa”, que oferece a melhor sistematização da história da música cubana. Lá, ele elege 5 complexos genéricos: son, rumba, danzón, punto guajiro e canzón. A partir dessa análise, você entende a música cubana. Minha dissertação de mestrado surge por que eu tinha uma banda no Rio de Janeiro em 1982, a Son Caribe, e toda apresentação me perguntavam como essa música se parece tanto com música brasileira. Foi para me aprofundar nas respostas que decidir estudar esse ponto na minha dissertação na USP: semelhanças e diferenças entre a música brasileira e caribenha. Falando sobre isso, vemos que ainda há um material muito grande a ser melhor trabalhado e definido. É preciso uma produção de filmes, estudos e documentários produzidos no Brasil sobre essa questão, porque a potencialidade é enorme. Como o que você me falou sobre a falta de material sobre o Buena Vista no Brasil. Agora eu te pergunto por quê?

PC — Acho que você fala um pouco sobre isso quando você cita um processo político de ruptura com o resto da América Latina. Penso que isso se tornou uma tendência da indústria de querer fechar o Brasil em seu próprio mercado.

EPV — Isso. Penso que a resposta está na indústria fonográfica. Veja, é muito mais fácil você vender um produto como o rock e o pop do que vender orquestras. E isso é um ponto de confronto que eu coloco. Mas tem outro ponto: você viu a quantidade de academia de dança no Brasil? Se você for à São Paulo e Rio, você vai ver muitas academias de salsa. Aqui em Curitiba temos 4 grandes. Eu penso que o mercado fonográfico não é a favor, mas o mercado de dança adora, estando clara uma descompensação. Aqui não se lança nunca um disco de salsa. Agora ouvi sobre um grupo da Venezuela que está fazendo shows no México, e o show está lotado. Diria que público teria, mas isso não interessa à indústria fonográfica. Porque é mais fácil vendar algo já encaminhado e que se retroalimenta do que se explorar em novos mercados, mesmo que se demonstre que no mundo é aceito um Buena Vista Social Club, mas nem precisa falar só deles. Veja, tem um cantor panamenho, o maior cantor de salsa do mundo, chama-se Rubén Blades. Recentemente gravou com o grupo Boca Livre. Acha que isso foi divulgado aqui? Existe uma barreira invisível que resiste. Eu produzi o último show de Célia Cruz, a rainha da salsa cubana. O último show dela no Brasil, feito com uma orquestra de Nova York, lotou as duas noites em São Paulo. Você encontra alguma divulgação de Célia Cruz em São Paulo? Não. Por isso, digo com tranquilidade: a indústria fonográfica não permite a entrada de música hispânica no Brasil, isso que a ditadura já passou. Mas penso que isso pode mudar, o processo pode passar a ser menos excludente.

PC— O documentário foca muito na ideia de que se aquele projeto não estivesse acontecendo naquele período, os artistas envolvidos seriam para sempre esquecidos. Quase 30 anos depois, esse risco ainda continua? As tradições podem ainda voltar a ser esquecidas?

EPV — Creio que não, porque o caso do Buena Vista foi uma combinação da matéria-prima cubana e uma produção com recursos para expandir o processo. Deu certo, a única viva do grupo de cantores original é Omara Portuondo, e mesmo assim o grupo continua. O Buena Vista reforçou o cenário da música tradicional cubana, mas surgiram muitos outros músicos cubanos. Nesse tempo, surgiu uma geração completa de reggaeton, que não é muito promovido pelo governo pelas letras, além de grupos de música erudita e músicos que foram aos EUA como Chucho Valdés, Paquito de Rivera e Arturo Sandoval que conseguem viver bem através do seu trabalho. Então sim, há um novo momento para música cubana, mas é claro que as dificuldades dentro da ilha são as mesmas, com uma dificuldade de consumo. Outra coisa muito importante: artistas cubanos tiveram seu trabalho usado nos EUA por anos, pela Fania ou o que seja. Todo artista no mundo tem direito à uma compensação pela reprodução de seu trabalho, seu direito patrimonial e de devida creditação nos produtos onde são vinculadas suas criações. O que acontece é que o embargo impede a chegada desse dinheiro aos artistas, e isso é grave. Eu, quando trabalhava em uma gravadora, tinha que mandar o dinheiro para Espanha, que podia mandar aos artistas na ilha. São coisas graves que ficam no sigilo, não são discutidas.

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