Crítica: Aurora é o nascimento de uma voz que unifica vivências das que já estão roucas

por Carolina Senff
Crítica: Aurora é o nascimento de uma voz que unifica vivências das que já estão roucas

O terceiro filme de João Vieira Torres exibido no Festival Internacional de Curitiba, Olhar de Cinema, é um reflexo de décadas de opressão feminina no no sertão nordestino. 

Por Carolina Senff | Fotos: Divulgação Aurora

A exibição do domingo à noite da competitiva brasileira do Olhar de Cinema foi de tirar o fôlego. A curadoria do Festival apresentou Aurora ao público, um docudrama sobre as raízes do diretor João Vieira Torres, que explora as várias camadas de violência, abuso, negligência e exclusão social.

O filme é um reflexo sobre os fantasmas e espíritos do passado. João, vivendo na França, tem um sonho com sua falecida avó, Aurora. A matriarca da família era parteira no interior da Bahia e tinha a fama de que em 40 anos de trabalho nenhuma mulher morreu em suas mãos. João nunca conheceu sua ancestral, ela faleceu em uma viagem longa de ônibus até Recife indo visitar seu neto.

A primeira metade é muito sobre as vivências do diretor, o que para o público pode ser cansativo, não temos tanta conexão com aquela realidade. É um filme de muitos diálogos, a voz de deus do próprio diretor e muitas imagens que não possuem conexões diretas com o que está sendo narrado. A sensação é de escutar um audiobook do diário de uma pessoa que você não tem a menor ideia de quem seja. Mas é nas nuances que o filme é belo e tocante.

A segunda metade do filme se aprofunda e abre uma ferida, principalmente nas mulheres. A árvore genealógica da família do diretor, fica bem longe do simples. Aurora tinha muitas irmãs, suas irmãs muitos filhos, esses filhos outros vários filhos e no meio dessa quantidade exuberante de pessoas existe João. Nosso narrador é um homem preto, do interior, de família conservadora e gay que tenta ficar cada vez mais distante, fisicamente, de sua família. Passa um tempo nos Estados Unidos e depois se muda para França.

A viagem de João às cidades do nordeste conta as histórias de várias mulheres da sua família. Cada cidade conhecemos uma personagem que estava conectada com Aurora. Existe a crença de que as mulheres desta árvore genealógica estão amaldiçoadas por Exu. Falácia. Não é uma entidade espiritual que “amaldiçoou” essas mulheres, foi o machismo estrutural.

João Vieira Torres, diretor de Aurora

João Vieira Torres, diretor de Aurora

Os relatos são de uma violência silenciosa absurda que chega a dar nojo. Casos de feminicídio em que as vítimas são as culpadas por não terem sido obedientes. Meninas expulsas de casa porque perderam a virgindade antes de casar. Mortes no parto por negligência médica. Preconceito da própria família por seguir uma religião diferente. Casamentos entre primos, meninas que tiveram de ser mulheres e tiveram a infância tirada de si. E João, um menino que queria conhecer sua família e mergulhou em um mar de sangue.

Ao assistir o filme agonia foi um dos sentimentos mais presentes. Sendo mulher é duro escutar as realidade dessas forças tão humanas mas que simboliza uma luta feminista através de décadas. Mulheres sabem o que é o medo de passar as coisas que elas passaram, sabem o que o diretor busca te dizer.

Aurora é uma batalha silenciosa em busca de respeito. João da Silva Teixeira é a voz daquelas que já estão roucas. É a voz de um país que implora por liberdade. O título do filme não é apenas o nome de uma matriarca. Representa a claridade que aponta o início da manhã, antes do nascer do Sol, são as primeiras manifestações de algo que está por vir, é o princípio de uma nova etapa.

Se prepare para Aurora, não é um filme fácil. As duras horas e dez minutos em uma noite de domingo pareceram três, fiquei sem posição na cadeira do cinema e meu foco foi testado. Entretanto esse foi dos filmes que me fez sair da sala em silêncio, fiquei muda no caminho até a casa absorvendo o tiro de realidade que havia tomado. Não é um documentário sobre a família de João Vieira Torres, é a história de mulheres que tiveram as escolhas roubadas e as vidas ditadas pelo machismo estrutural e violência.

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