Em busca de um novo porto seguro

por Equipe Festival de Teatro
Em busca de um novo porto seguro

Crianças e adolescentes vítimas de negligência familiar encontram abrigo em casas de apoio

Por Carolina de Andrade e Helena Sbrissia

“Eu me sinto acolhida. Eles são muito carinhosos com a gente”. F. mora em abrigos desde que tinha um ano; apesar da tentativa de retorno para a família, ela está novamente na casa de passagem. No começo, ela conta que ‘surtava’, porque não entendia muito bem o que estava acontecendo. F. tem outros oito irmãos que também estão em casas de acolhimento.

“Tem gente que me conhece de fora e diz que queria visitar um desses lares só para saber como é, e dar mais valor para a própria família, ser uma pessoa melhor”. F. conta que seu sonho é cursar Teologia e participar do programa Médicos sem Fronteiras.

S., de 16 anos, mora na Casa desde os sete. Ela conta que vê televisão e arruma suas próprias coisas no tempo livre. Faz pouco tempo que voltou para a casa de passagem, pois, assim como F., chegou a voltar para a família, mas não foi possível sua permanência.

“Tem gente que diz que lá eu vou me endireitar porque eu não gosto muito de receber ordem das pessoas, mas lá eu vou ter que seguir”. O sonho de S. é entrar no Exército e conquistar um lugar de destaque no comando.

O sonho de A., de 15 anos, é cursar Biologia. “Eu gosto de morar em um lugar calmo assim. Parece que não tem nenhum vizinho fofoqueiro”. A menina chegou na casa recentemente, no mês de abril, e conta que ainda não se acostumou com o novo lar.

O relato são de três adolescentes que estão em uma Casa de Passagem, na Região Metropolitana de Curitiba, em Colombo. Retiradas de suas famílias por estarem em situação de negligência e terem seus direitos violados, o abrigo é temporário, onde podem ficar até 72h até terem a situação avaliada pelo Ministério Público em conjunto com a promotoria e equipes multidisciplinares, decidindo se serão devolvidos para a família ou então encaminhados para outras casas de acolhimento, em que podem permanecer até completarem 18 anos

Mantido o acolhimento, a criança ou o adolescente vai da casa de passagem para outro lar. No caso de bebês, para a Casa da Tia Sula. Se adolescente, para Casa de Amira, e quando menino para o Pequeno Príncipe segundo segundo a coordenadora da Casa de Passagem, Suzana Vieira Barros. Crianças abaixo de cinco anos vão para a Casa de Alice, todas em Colombo, na Região Metropolitana de Curitiba. Os locais não são identificados e se encontram em regiões afastadas para a proteção tanto de quem trabalha quanto dos abrigados.

Suzana, ainda, explica como funciona a casa de passagem: constatada uma violação dos direitos, a criança ou o adolescente é levado até lá, onde são alimentados, higienizados e vestidos com roupas doadas pela comunidade. “Muitas vezes, quando é por intervenção de polícia ou quando elas vêm direto da escola, a criança só vem com a roupa do corpo. Não tem como a mãe fazer uma mala”. Atualmente a casa conta com seis crianças, mas, em algumas noites, chegam a amanhecer com até 10.

As principais causas para que esses menores sejam levados para esses lares são casos de abuso infantil, situação de risco – porque o responsável estava com ela em uma boca de fumo, bar ou até mesmo na rua durante a madrugada – e agressão física. “O próprio familiar, que é onde a gente geralmente se sente protegido, não tem esse acolhimento; precisamos amparar essas crianças e dar um suporte, um apoio, dar o direito de ser criança a elas. Elas não conseguem se defender sozinhas. E quem sabe, no melhor dos casos, fazer com que essa família se conscientize”, indica Suzana.

Lembranças e cicatrizes

A psicóloga infantil Thaís Jungbluth explica que dependendo da idade em que a criança é submetida aos diferentes tipos de abuso – psicológico, físico, sexual ou até mesmo condições de trabalho infantil e tráfico de crianças – ela não se atém ao fato da violência ter acontecido ou estar acontecendo. É somente com o passar dos anos que há um entendimento de que determinados atos não eram formas de amor e carinho.

“Para detectar os sinais de violência é necessária muita atenção, qualquer gesto ou atitude incomum já pode descrever algo de diferente que aconteceu no dia da criança. Geralmente esses sinais são observados dentro de casa, onde a criança se isola, recusa-se a sair, tem pesadelos, medo de ficar sozinha e de pessoas que lembrem o agressor. Na escola, agressividade com os colegas, desatenção e notas baixas são os principais ‘sintomas’ que são detectáveis”, enumera a psicóloga.

Segundo Thaís, a vítima carrega para a vida pessoal marcas como a introversão. “Em um contexto mais grave, existem até mesmo casos em que uma nova vítima é escolhida para sofrer pelas mesmas coisas que a pessoa passou”. A profissional ainda alerta sobre os cuidados necessários, como onde e com quem a criança está, já que muitas vezes os agressores são conhecidos da família.

As dificuldades da garantia dos direitos e a importância do acolhimento

O gestor e assistente social da Secretaria de Assistência Social da prefeitura municipal de Colombo, Raul Cesar Moraes, aponta algumas das dificuldades do trabalho de acolhimento e proteção da criança e do adolescente. Segundo Moraes, entende-se que a comunidade também tem a obrigação de trabalhar, desenvolver projetos, ações e atividades que envolvam as crianças residentes dessas casas. Porém, muitas vezes, eles atendem “o filho de uma pessoa que tem influência e condição, de modo que aquela criança que necessita, por não estar inserida num seio familiar adequado, não tem acesso”.

Além disso, segundo o assistente, um vizinho, tendo vínculos e condições, tem a obrigação também de acolher por conta própria e evitar a ida desses menores para as casas de apoio, mas muitas vezes o sistema não vê esse personagem como um possível anjo da guarda da criança ou do adolescente, que acaba indo para o acolhimento, e, pela demora e burocracia, pode ficar por tempo indeterminado nos abrigos.

“Se eu tivesse a opção de escolher não ter casas de acolhimento, e, ao invés disso, pudesse trabalhar para que a família e a sociedade pudessem garantir o direito da criança sem violar, eu não gostaria que esses lares existissem. Mas infelizmente, no mundo e na situação em que vivemos, é importante. Temos várias situações de negligência, violência e abandono, temos em vista que todos merecem ter uma vida saudável”, lamenta o assistente social.

Para a diretora da Proteção Social Especial da Prefeitura de Colombo, Nilva Volpi, outra grande problemática é a capacidade máxima das casas, de 10 a 20 crianças, quase sempre ultrapassada. “Se tenho uma casa para 10 crianças e coloco o dobro, e com poucos servidores, já estamos violando o direito da criança de atenção, educação, lazer e carinho. Os direitos são garantidos de um lado, porque nós pensamos que, tirando a criança do lar, garantimos direitos, mas como fica do outro? Geralmente a criança é retirada, mas o violador permanece no espaço que deveria ser o porto seguro desse menor”.

Nilva destaca a importância dessas casas de acolhimento para garantir às crianças em situação de negligência, a vida e os direitos básicos, como saúde e educação. Contudo, eles enfrentam grande dificuldade no que diz respeito aos servidores públicos, isto é, profissionais que atuam nos locais de acolhimento. “Com a falta do repasse da responsabilidade fiscal no município, não conseguimos realizar os concursos e passamos cinco anos ou mais sem a incorporação de novos funcionários. Não temos servidores para chamar para o ocupar os espaços vagos de pessoas que saíram ou se aposentaram”, aponta.

Os direitos das crianças e adolescentes no contexto histórico

A Primeira e Segunda Guerras Mundiais deixaram um grande lapso parental para crianças de diversas etnias, o que exigiu por parte dos países a criação e instituição de novos órgãos para a proteção de quem não havia nenhuma. De acordo com a historiadora Carina Nogueira, em 1919 foi criado o Comitê de Proteção da Infância, primeiro órgão governamental internacional a priorizar e focar o trabalho em menores.

Depois da Segunda Guerra Mundial, então, foram criados o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Além dos órgãos internacionais, no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi aprovado em 2 de setembro de 1990, garantindo através de uma série de leis a proteção dos direitos dos menores. Sete anos mais tarde o disque 100 foi criado como mecanismo de denúncia de violações.

Carina discorre, ainda, que se a criança não exercer seu direito de participação no cotidiano, seja no espaço escolar, em sua família ou na comunidade, não é possível a construção de uma cidadania para esse menor que, historicamente, sempre foi retratado como não-sujeito de direitos, mas sim como objeto de controle por parte dos adultos.

“De um lado está o direito do adulto em exercer a proteção da criança, dependente desta proteção, que é considerada por ele incapaz de assumir responsabilidades; do outro lado, há a não aceitação do adulto de que a criança é um sujeito de direitos civis básicos, incluindo aí o direito da criança de participar nas decisões que afetam a sua vida”, finaliza a historiadora.

Segundo o Promotor de Justiça Rodrigo Leite Ferreira, as crianças e os adolescentes têm previsto pelas leis direito à educação, integridade física e psicológica, direito ao lazer, de exercer sua personalidade e também de a desenvolver livremente, não sofrendo qualquer tipo de abuso.

“Infelizmente os direitos ainda não são plenamente protegidos no Brasil. Nós temos uma legislação muito boa no âmbito protetivo, mas na prática, ainda há muita situação de abuso contra a criança. Ano a ano a proteção vem sendo aprimorada, mas existe um caminho a ser percorrido”, explica Ferreira.  

Ele conclui exemplificando que o Estado, pela constituição da República, tem o dever de proteger a criança. Esse dever, contudo, é estendido à família, aos pais, aos responsáveis e à escola, que precisam fazer um trabalho conjunto para garantir o melhor bem estar para o menor, principalmente aqueles em situação de risco.

Confira o vídeo da Casa de Alice e a galeria de foto da Casa de passagem

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