Apenas 35,4% dos jovens negros chegam ao ensino superior

por Laís da Rosa
Apenas 35,4% dos jovens negros chegam ao ensino superior

Pessoas negras estão em menor número nas universidades particulares. O que era para ser um ambiente seguro para os alunos, acaba se tornando um ambiente possível de atos racistas.

Por Felipe da Fonte e Laís da Rosa

 

Em todas as regiões do país pode-se observar uma quantidade menor de pessoas negras e pardas de 20 e 22 anos cursando o ensino superior, mas na região sul do país esse número aumenta. Estudantes negros e pardos compõem 50,3% nas instituições de ensino superior da rede pública, devido às cotas, porém seguem sendo sub-representados, segundo dados da pesquisa de 2018 do portal Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Essa pesquisa também mostra que em 2018 a taxa de ingresso de alunos negros e pardos em universidades era de 35,4%. Um fator que auxilia a compreensão desse resultado é a proporção de alunos que precisam largar os estudos para procurar trabalho.

Completos 132 anos da abolição da escravidão, o racismo ainda existe e está presente no cotidiano de muitas pessoas. Sabe-se que atos racistas acontecem no ambiente acadêmico e muitas vezes o criminoso não é punido de forma eficiente e o caso acaba sendo esquecido por não ser divulgado. O que era para ser um local seguro para alunos e professores negros, acaba se tornando um ambiente possível de atos racistas.

João Pedro (nome fictício) conta que sofreu racismo de um segurança dentro de uma universidade em Curitiba na qual era ex-aluno. Ele afirma que no início desse ano adquiriu um benefício para continuar a frequentar as dependências da universidade mesmo depois de formado. Ele decidiu utilizar a biblioteca da instituição para estudar para um concurso público que tinha se inscrito. “No caminho da biblioteca, um segurança me abordou e perguntou o que eu estava fazendo lá, eu disse que era ex-aluno. Ele continuou e queria uma prova, de que curso que eu era e eu mostrei a minha carteirinha e falei para ele que aquilo já tinha acontecido outra vez e que era racismo. Acredito que ele me abordou por pensar que eu poderia oferecer algum risco à universidade, o que não era verdade, e só era atribuído a minha cor”, diz.

Pedro também diz que a representatividade no ambiente acadêmico é importante para criar modelos de identificação e contribuir para o sentimento de pertencimento do aluno na instituição acadêmica. “Noto uma hegemonia tanto entre os estudantes como também com quadro de professores, coordenadores de curso […] na questão racial, posso contar que tive apenas dois professores negros durante toda a graduação, e imagino que esse número não difere muito em outros cursos.”

A professora de Filosofia Marilene Mendes é a única professora negra em uma das escolas em que atua. Ela conta sobre uma situação que ocorreu em 2019, com um aluno novo do primeiro ano do ensino médio. Ela afirma que cobrou o aluno em relação às atividades que eram propostas em sala e ele foi racista. “Quando eu saí de sala, algumas alunas da equipe dele foram até a coordenação dizer que ele estava usando termos racistas para se referir a minha pessoa, “essa preta acha que manda em mim”. Aí a pedagoga me chamou para me deixar ciente que ela já havia convocado uma reunião com os responsáveis do menino, e que ela já ia me dar a ata para que eu pudesse fazer o boletim de ocorrência, se assim eu quisesse”, diz.

Mendes conta que fez o boletim de ocorrência para a escola e foi mostrado para o aluno. A educadora disse que depois disso a postura dele mudou. “As pessoas às vezes não aprendem pelo ensino, mas aprendem pela lei. É a lei que impõe o medo”. Ela ressalta que já fez boletins de ocorrência várias vezes, mas que a postura dela sempre foi de extrema educação.  

Levi Kaique Ferreira, 26 anos, produz conteúdos sobre a negritude para a internet, é apresentador do Influência negra no IGTV, no Instagram, e também colaborador dos portais Pretitudes e do portal Mansão Black. Ele afirma que a dificuldade de estudantes negros na sala de aula tanto nas faculdades particulares como nas faculdades públicas é por estarem marginalizados, sem acesso à educação e por competirem com gente que possuiu uma base de estudos muito boa. 

Sobre as faculdades particulares ele diz que possuem uma visão muito mais econômica do que estudantil. “Se a gente quer colocar estudantes negros em universidades, o governo deve financiar essas vagas nas faculdades particulares, e não ver isso como se fosse uma responsabilidade das faculdades particulares. E para mudar essa realidade é só com política pública, ou seja, aumento de investimento na população e aumento de investimento na educação base”, diz. 

Ferreira afirma que já sofreu racismo várias vezes, em relação ao cabelo, já confundiram ele com bandido, passou por abordagem policial racista, insinuaram que ele tinha roubado alguma coisa, piadas racistas no dia a dia, entre outros atos. “Tem também os elogios racistas disfarçados, como por exemplo ‘nossa você é muito inteligente para um negro’, ‘você é um negro de alma branca’, ‘eu nunca pensei que você seria engenheiro’ […] Uma vez a polícia parou eu e meus amigos brancos e me afastou deles, perguntou se eu estava sequestrando eles.”

Para o criador de conteúdo, o número de crimes racistas é discrepante no Brasil, porque o país normatizam o racismo. Ele ressalta que o atual governo promove um desmanche de todas as frentes de resistência negra, como a Fundação Palmares, e que têm pessoas no poder que são comprovadamente contra as lutas antirracistas, por esse motivo o povo não tem políticas contra isso. Ferreira ainda explica que a imagem da população negra ainda é associada à criminalidade, à violência, etc. “O povo tem uma resistência muito grande quando se coloca uma pessoa negra em uma posição de poder, o que prova que o Brasil é um país racista […] A exigência para pessoas negras é muito maior. Ser negro no Brasil é praticamente lutar duas vezes mais para alcançar metade, então é muito complicado”, afirma Ferreira. 

Ativista social e uma das lideranças do movimento negro no Estado do Paraná, Denis Denilto também é presidente do grupo de trabalho dos povos tradicionais na superintendência geral do diálogo e interação social, localizada no Palácio Iguaçu, em Curitiba. Segundo Denis, o racismo é uma ótima justificativa para as injustiças que temos no mundo atualmente, mas também apresenta seu lado positivo. O racismo tem “a capacidade de transmutar e de unificar, inclusive discursos contrários, como por exemplo discursos ideológicos e partidários”, afirma o ativista. 

Questionado sobre o que podemos fazer para mudar essa realidade, Denis afirmou que o Brasil precisa assumir a sua identidade acima de tudo. “Se você observar tudo que acontece além da questão racial, mas dentro da nossa política, você vai observar que nosso país é um país de privilégios, nós não assumimos nosso grau de responsabilidade com a nossa identidade racial, com nossa identidade cultural, com nossa identidade religiosa, então o Brasil precisa tomar essa vitamina, esse remédio de estima, de autoestima e, de uma vez por todas, expurgar esses estigmas”, pondera Denilto. O ativista ainda diz o que pode ser feito para melhorar toda essa questão envolvendo o preconceito. “Ao reconhecermos as matrizes indígenas e africanas já estaremos dando um grande passo para o reconhecimento, e principalmente, para a justiça social”, diz. 

Para complementar, ele ainda afirmou que a questão do racismo nas universidades vai muito além do envolvimento de capital, e sim da não permissividade para que essas pessoas possam participar de espaços decisórios dentro da instituição. “O Prouni traz lucro para as universidades, portanto se está entrando dinheiro no caixa consequentemente ela não será contra. Para se ter uma noção da diferença entre  racismo e capital, um jovem negro pode estudar, pois está entrando recurso, no entanto não pode participar dos espaços decisórios a partir da ciência que ele produz”, afirma. Resolvendo isso, Denis acredita que a situação deve melhorar. “É algo contraditório que as universidades particulares devem vencer para se tornarem, de fato, uma instituição producente”, finaliza. 

A professora universitária e ativista Lucimar Dias relata que aos 18 anos de idade começou a ter um contato com um grupo chamado Trabalho Estudos Zumbis (TEZ), que inclusive tem um vínculo até hoje. Ela conta que se tornou ativista depois de ter tomado consciência daquilo que ela já tinha passado, pelo racismo. “Todos os sofrimentos, as dores, enfim, as questões que eu vivi na escola eu consegui lutar contra isso. Eu me tornei ativista para lutar contra o racismo, para lutar por igualdade racial, para lutar por todas as crianças negras”, diz a professora.

Sobre a questão referente a professores negros nas universidades, Dias afirma que existem poucos professores negros nas universidades e que falta bastante representatividade no meio, pelo fato de que a universidade foi por muito tempo um espaço reservado à elite branca, classe média alta no Brasil. “A Universidade Federal do Paraná está fazendo concursos e ela aplica cota racial, mas para professores e professoras não, ou seja, não existe ainda cota racial no concurso público e isso é uma coisa muito séria, diz muito sobre o que a universidade quer e que composição de professores e professoras ela quer”, afirma  

A educadora comenta sobre a diversidade étnica nas salas de aula. Ela reitera que é necessário pôr em pauta a universidade diversa como qualquer espaço público e social da nossa sociedade. “Eu não quero mais ser a única professora negra no meu departamento. Eu quero estar entre os pares, eu quero estar com as pessoas e poder me ver entre as pessoas em qualquer lugar da sociedade por onde eu circule.”

Dias ressalta que é a favor de cotas para qualquer espaço, e até para as universidades particulares. “Como todas as outras, universidades particulares, têm um compromisso social, então sim, elas deveriam implementar cotas raciais. As universidades particulares lucram com a educação, parte do seu lucro deveria ser dedicado a trazer alunos negros e para as universidades. Elas estão devendo este compromisso social com a população negra brasileira”, conclui.

Em relação a incentivos por parte do governo, Dias comenta que sente falta de políticas, tanto para alunos quanto para professores negros, para que cheguem nas universidades. Poderia sim, ter programas de bolsa, programas de financiamento de pesquisas específicos, programas de financiamento de extensão para professores negros que trabalham com a questão racial. Não existe uma política estruturada organizada para alunos e professores negros.” A professora ainda ressalta que, nesse governo atual, ela não possui a ilusão que vai existir esses financiamentos, mas pelo contrário, vão sofrer cortes. 

 

Projeto de Aplicativo é desenvolvido para combater o racismo nas universidades.

A ideia surgiu em uma disciplina chamada Projeto Empreender pelos alunos de Jornalismo do 5º período da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). O objetivo inicial era mapear uma ‘dor’ e seguir as etapas de preparação para criação de um novo projeto. O aplicativo denominado “Help” oferece a possibilidade dos alunos participarem de rodas de conversa, palestras e até mesmo denunciar pessoas que foram racistas. Afinal, racismo é crime e os estudante dentro do campus não podem ser vítimas desse crime. Outro espaço do aplicativo é a opção que os estudantes têm de se comunicar com algum profissional da área da saúde caso tenha sido vítimas. 

Para João Pedro (nome fictício), a inclusão da plataforma digital aos meios de ensino é um dos objetivos da educação nos últimos tempos. Ele diz que é um desafio manter os estudantes engajados em atividades acadêmicas via on-line. “Essa iniciativa vinda por partes dos próprios estudantes só vem a somar ao projeto, já que estes são os maiores beneficiários. Eu usaria este aplicativo, e tendo uma boa experiência, indicaria para os meus colegas também”, afirma o estudante. 

A professora Marilene Mendes Nere diz que muitas vezes as pessoas não denunciam por medo de se expor. Ela acredita que o aplicativo pode trazer um certo temor entre os estudantes e mostrar que as atitudes deles podem ter uma punição efetiva. “Ele pode pensar o que ele quiser, mas não pode agir, falar, ser agressivo com as pessoas, pois pode ter alguém ali do lado que vai denunciá-lo e que essa denúncia em relação a atitude dele vai ter uma consequência, uma punição”, relata.

Levi Kaique Ferreira fala que nas universidades e nas escolas, o acesso à informação é essencial. “Um aplicativo que providencie e facilite isso é muito importante nesse sentido, pois são essas pessoas, esses jovens universitários que serão o futuro, que estarão em posição de poder, e tendo acesso a essas informações, processando isso e tendo uma atitude antiracista, são essas pessoas que vão conseguir mudar nosso país, mudar o nosso futuro, a partir dessa perspectiva de conhecer e resolver os problemas.” 

Para a professora universitária Lucimar Dias, a ideia do aplicativo seria muito bem-vinda nesse momento, já que muita informação se pode encontrar pelos celulares. “Pode-se constituir uma ótima ferramenta de luta por igualdade racial dentro do ambiente universitário, e é o que nós estamos precisando”, conclui.

Antes da criação do aplicativo em si, os alunos da PUCPR criaram uma página no instagram (@help.aplicativo) com o objetivo de criar uma rede de informações relacionadas ao tema do projeto. Eles pretendem compartilhar conteúdos sobre a negritude, divulgar páginas e informações de serviço, e também promover a luta contra o racismo, não apenas dentro das universidades, mas também nas redes sociais. Abrindo assim, um espaço para todas as vozes negras. 

 

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