Cerca de 43% dos cinemas do país são do Eixo Rio-SP

Pessoas, culturas e histórias das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul cada vez mais desaparecem do cinema nacional
Por Bernardo William, Luiza Braz e Tobias Dietterle | Foto: Flickr
A visibilidade que os filmes produzidos em determinado lugar recebem é um reflexo de como a cultura é tratada no Brasil. De acordo com levantamento do jornal Comunicare com base em dados abertos da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), o país possui 3.416 salas de cinema em funcionamento. Desses, 43,5% se encontram nos estados de São Paulo ou Rio de Janeiro, totalizando 1.485 salas de cinema em apenas dois estados do Brasil. No restante, são 1.931 salas de exibição. Proporcionalmente, no eixo Rio-SP, a média é de 742,5 salas de cinema por estado, enquanto somam-se, em média, 77,24 cinemas por UF fora do eixo.
O escasso número de salas de cinemas fora do sudeste, principalmente nas regiões norte e nordeste, é um dos principais agravantes para a falta de produções audiovisuais que emplacam na mídia nacional. Na última década, o filme de maior sucesso produzido fora do eixo Rio-SP, o longa-metragem “Bacurau”, foi apenas o 38º em termos de número de espectadores em escala nacional. Mesmo diante deste cenário, a região ainda assim representa o segundo maior número de salas de cinema no Brasil, com 617 salas ativas, ou 16,9% do total.
Após as regiões Sudeste e Nordeste, a terceira maior concentração de salas de cinema no país se encontra na Região Sul, com 579. Em seguida, a região Centro-Oeste compõem 305 salas de cinema ativas no Brasil. A região com o menor número é o Norte, com apenas 240. O número de cinemas ativos no Sudeste é ainda maior que todas as outras regiões somadas. São 1.908 salas ativas, contra 1.741 no restante do país.
As produções das demais regiões do Brasil que tiveram maior sucesso nos últimos 10 anos, encontram-se nas seguintes posições em relação à visibilidade nacional: na região Sul, o longa de maior público – “Ferrugem”, uma produção paranaense – é 216º em escala nacional; no Centro-Oeste, “Uma Loucura de Mulher”, produção goiana, se encontra em número 119º; e no Norte, “Noites Alienígenas”, do Acre, é o 392º filme de maior sucesso no Brasil desde 2015.
Dados mostram que também há maior dificuldade em manter um cinema aberto nos demais estados do Brasil, fora de Rio de Janeiro ou São Paulo. Ao todo, cerca de 806 salas de cinema fecharam em estados fora do eixo Rio-SP desde 2015, enquanto 466 salas foram fechadas no mesmo período em Rio de Janeiro e São Paulo.
A situação se reflete também ao comparar as regiões do país entre si, o Centro-Oeste apresentou a maior porcentagem de salas fechadas na última década, chegando a 35%, seguida do Sul e do Norte.
Ainda Estou Aqui
No ano passado, em 2024, o longa Ainda Estou Aqui dominou o cenário cultural nacional, além de ser um grande sucesso comercial com uma arrecadação de mais de R$ 64 milhões no país, segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Apesar da importância cultural e histórica do filme, o sucesso do longa é mais uma peça que desenha uma tendência do cinema brasileiro – um grande mosaico formado por histórias, pessoas e cenários de apenas dois estados do país, Rio de Janeiro e São Paulo. A produção de Ainda Estou Aqui é inteiramente fluminense, assim como de 32 dos 50 filmes de maior bilheteria na história do Brasil. Quando se inclui São Paulo, este número sobe para 48.
O cinema não apenas é uma forma de lazer, mas representa um aspecto fundamental na construção social e histórica dos fatos que moldam a coletividade. Além dos números de bilheteria, a obra Ainda Estou Aqui também teve amplo reconhecimento internacional. Foram três indicações ao Oscar, além de se tornar o primeiro filme brasileiro a vencer o prêmio de Melhor Filme Internacional, o que causou comoção no país inteiro durante os meses que antecederam a premiação. De acordo com a Ancine, em 21 semanas de exibição nos cinemas, o longa ultrapassou os 5 milhões de espectadores no Brasil.
O longa traz a história de uma das milhares de famílias afetadas pelo regime da Ditadura Militar no Brasil, retratando a vida dos Paiva antes, durante e depois da prisão de Rubens Paiva, o pai. A representação cinematográfica serviu para dar voz a um acontecimento que trouxe dor a milhares de famílias, mas acima de tudo conscientizar as pessoas que não tinham conhecimento do que foram as mais de duas décadas do período militar. O longa neste caso, ainda serviu como forma de acervo histórico, memorizando para sempre os fatos que não podem ser esquecidos da história brasileira.

Foto: Divulgação
Vale destacar que a visibilidade e o reconhecimento da obra tiveram início previamente a sua estreia para o grande público em 7 de novembro de 2024. Exatamente dois meses antes, em um dos maiores festivais de cinema do mundo, o filme foi reconhecido e premiado. O Festival de Veneza reconheceu “Ainda Estou Aqui” como o filme de melhor roteiro.
Maior sucesso fora do Eixo Rio-SP
O longa-metragem Bacurau, produção pernambucana, estreou nos cinemas brasileiros em 29 de agosto de 2019, e reuniu, de acordo com a distribuidora Vitrine Filmes, mais de 700 mil espectadores. A obra acumulou uma renda de R$11,2 milhões, e foi reconhecido na França em um dos festivais mais prestigiados no mundo do cinema, o Festival de Cannes, vencedor na categoria “Prêmio do Júri”.

Foto: Divulgação
A narrativa conta a história de uma pequena cidade brasileira em Pernambuco, que, após o falecimento de sua matriarca, é vítima de ataques estranhos que ameaçam destruir toda a região. O filme explora uma temática fantástica, que discute a memória e preservação de culturas e tradições não-hegemônicas, que precisam resistir ao passo que são apagadas e invisibilizadas em um contexto moderno.
Apesar das conquistas internacionais, e a importância da obra para a identidade de toda uma região, o sucesso de “Bacurau” ainda assim não se compara às maiores produções do Eixo Rio-SP. Em 16 semanas de exibição, o longa alcançou um público de 741.977 pessoas, segundo dados da Ancine, número quatro vezes menor do que o total de espectadores de Ainda Estou Aqui em território nacional.
O cinema também é um meio de diversificar a cultura e a arte, além de promover o debate e a reflexão em diversos filmes e na preservação de momentos históricos na memória coletiva em todos os aspectos da identidade brasileira. Não se pode esquecer que um filme nordestino, O Pagador de Promessas, é o primeiro, e até então único filme brasileiro a ganhar o maior prêmio do Festival de Cannes, a Palma D’Ouro, em 1962. Um país fragmentado em vários pontos de vista, sensibilidades, ideias e histórias que dizem respeito às diversas faces do Brasil, a arte produzida em todo o território nacional tem uma voz possível de ecoar aos ouvidos de todos – se for escutada.
Referências:
- FOLHA DE S.PAULO. Filme ‘Bacurau’, que levou mais de 700 mil pessoas aos cinemas, estreia na TV aberta. Ilustrada, 29 nov. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/11/filme-bacurau-que-levou-mais-de-700-mil-pessoas-aos-cinemas-estreia-na-tv-aberta.shtml. Acesso em: 21 maio 2025.
- AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA (ANCINE). “Ainda Estou Aqui” faz história no cinema brasileiro. [S.l.], [s.d.]. Disponível em: https://www.ancine.gov.br/noticias/ainda-estou-aqui-faz-hist%C3%B3ria-no-cinema-brasileiro. Acesso em: 21 maio 2025.
- UOL ENTRETENIMENTO. Por que ‘Bacurau’ ainda é relevante um ano após estreia; diretor comenta. 29 ago. 2020. Disponível em: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/29/por-que-bacurau-ainda-e-relevante-um-ano-apos-estreia.htm. Acesso em: 21 maio 2025.
Esta reportagem foi desenvolvida na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da PUCPR. Confira outras no link: www.portalcomunicare.com.br/jornalismo-investigativo