Curitiba às cegas: mais de 43 mil pessoas esperam por atendimento oftalmológico no SUS

Enquanto a cidade avança em tecnologias urbanas e serviços digitais, milhares de moradores aguardam, por tempo indeterminado, uma consulta com oftalmologista
Por Laís Caimi Marquardt | Foto: Pavel Danilyuk/Pexels
Curitiba, considerada referência em saúde pública em diversas frentes, esconde nas sombras dos corredores do SUS uma crise silenciosa que afeta diretamente a visão de milhares de cidadãos. De acordo com dados obtidos no portal de Dados Abertos da Prefeitura e cruzados com informações da Secretaria Municipal de Saúde, mais de 43 mil pessoas aguardam por atendimentos oftalmológicos na capital paranaense.
A especialidade acumula um total de 43.737 pacientes na fila, 42.078 esperando por uma consulta geral em oftalmologia, uma das etapas mais básicas e fundamentais da assistência em saúde ocular. Outros 1.659 pacientes aguardam avaliação para catarata, condição comum em idosos e cuja demora pode levar à cegueira. Os dados foram coletados nos dias 30 de abril e 7 de maio.
Apesar da gravidade da situação, outros atendimentos especializados como glaucoma, retina e transplante de córnea não têm registros de usuários em fila. Isso pode sugerir uma ausência ou fragilidade nos processos de triagem e encaminhamento. A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.
Sem transparência, sem visão
No site da Prefeitura de Curitiba não há informações sobre a posição individual dos pacientes na fila nem sobre o tempo médio de espera para atendimento. Quem aguarda por uma consulta oftalmológica relata que recebe apenas a orientação genérica de “aguardar contato”. Essa falta de transparência no sistema gera dúvidas sobre a eficiência da gestão e os critérios utilizados para priorização dos casos.
O problema, no entanto, vem de longa data. Em janeiro de 2025, 5,7 milhões de pessoas estavam na fila do SUS. A espera por uma consulta chegou a 57 dias, em média — recorde histórico. Os dados são do Sistema Nacional de Regulação (Sisreg) e foram levantados pelo jornal O Globo via Lei de Acesso à Informação.
No Paraná, esse número é ainda maior. O tempo médio de espera por uma consulta médica no SUS chega a 78 dias, conforme levantamento de 2025 do Brasil Em Mapas, com base em dados do DATASUS/SISREG – Ministério da Saúde. O estado está acima da média nacional e figura entre os que mais enfrentam atrasos no agendamento de atendimentos, o que acende um alerta especialmente para capitais como Curitiba.
Fonte: Brasil Em Mapas, com dados do DATASUS/SISREG – Ministério da Saúde (2025).
Quem está sendo atendido
Para tentar entender quem são os principais impactados pela fila, esta reportagem analisou a planilha “2025-04-06_ Sistema-Saude_Medicos-Base_de_Dados.csv”, com registros de consultas realizadas entre 02 de dezembro de 2024 e 21 de fevereiro de 2025, disponível no portal de Dados Abertos da Prefeitura de Curitiba.
No gráfico abaixo, a análise mostra que a maioria dos atendimentos está concentrada nas faixas de 10 a 19 anos, especialmente para o sexo feminino.
Fonte: Sistema E-Saúde – Perfil de atendimento médico nas Unidades Municipais de Saúde de Curitiba. Prefeitura Municipal de Curitiba (2025)
No período entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025, foram realizados 588 atendimentos médicos especializados em oftalmologia, abrangendo pacientes de 56 bairros de Curitiba — o que corresponde a cerca de 75% dos 75 bairros oficiais da cidade.
O gráfico a seguir apresenta a distribuição desses atendimentos realizados em consultas especializadas, considerando exclusivamente as consultas médicas, sem incluir exames ou outros procedimentos.
Desses atendimentos, 328 ocorreram no Centro de Especialidades Santa Felicidade e 260 no Centro de Especialidades Salgado Filho. Entretanto, não há registros disponíveis que expliquem por que os pacientes foram atendidos especificamente nessas unidades, o que limita a compreensão sobre os critérios de encaminhamento e a demanda por cada centro.
Entre os bairros com maior número de pacientes atendidos destacam-se:
- CIC (Cidade Industrial de Curitiba), com 128 atendimentos;
- Sítio Cercado e Uberaba, ambos com 90 atendimentos;
- Cajuru, com 80 atendimentos;
- Alto Boqueirão, com 75 atendimentos.
Além desses, bairros como Pinheirinho, Santa Cândida, Pilarzinho, Xaxim e Bairro Alto também registraram números expressivos, evidenciando a ampla cobertura geográfica dos serviços ofertados.
Fonte: Sistema E-Saúde – Perfil de atendimento médico nas Unidades Municipais de Saúde de Curitiba. Prefeitura Municipal de Curitiba (2025)
Visão que se perde com o tempo
A falta de diagnósticos precoces agrava situações tratáveis, como catarata, miopia, glaucoma e degeneração macular. Em muitos casos, a negligência por falta de atendimento oportuno leva à perda total da visão. Em um país onde, segundo o CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmologia), mais de 75% dos casos de cegueira são evitáveis, o cenário em Curitiba expõe falhas graves de gestão.
Além disso, a fila invisível de exames, como campimetria visual, mapeamento de retina, tonometria e topografia de córnea, sequer é contabilizada com clareza nos dados oficiais, dificultando o rastreio da real dimensão do problema.
O plano federal para desafogar a fila
Enquanto isso, o governo federal estuda um novo modelo para reduzir as filas do SUS: trocar dívidas de hospitais e operadoras com a União por cirurgias e exames realizados na rede privada.
A proposta faz parte da reformulação do programa Mais Acesso a Especialistas, lançado em março de 2024, mas que não saiu do papel. A nova gestão do Ministério da Saúde, com o ministro Alexandre Padilha, quer que a iniciativa vire marca do terceiro mandato de Lula.
Como parte desse esforço, o governo federal planeja investir R$ 2,4 bilhões em 2025 através do programa, focando em áreas como oncologia, cardiologia, oftalmologia, otorrinolaringologia e ortopedia.
O objetivo principal é reduzir significativamente os tempos de espera para consultas, exames e resultados nessas especialidades, proporcionando um modelo de remuneração baseado no cuidado integral e priorizando o paciente.
A nova fase do programa também se baseia no sucesso do Programa Nacional de Redução de Filas (PNRF), que destinará R$ 1,2 bilhão para cirurgias eletivas, visando realizar mais de 1 milhão de cirurgias por ano entre 2024 e 2026. O plano prevê a realização de parcerias com o setor privado para a execução de procedimentos, a contratação de equipes médicas e a ampliação de mutirões realizados fora da rede pública.
A ideia é acelerar os atendimentos e dar visibilidade à ação federal. No Planalto, há o receio de que, sem medidas fora da estrutura tradicional do SUS, o crédito político vá para estados e municípios, responsáveis pela maior parte da gestão da saúde. Atualmente, 84% da população brasileira é usuária exclusiva do Sistema Único de Saúde (SUS).
Fontes:
As informações utilizadas nesta reportagem foram obtidas por meio do Portal de Transparência da Prefeitura de Curitiba, na seção de Filas Públicas de Saúde, e dos Dados Abertos da Prefeitura Municipal de Curitiba, especificamente do Sistema E-Saúde – Perfil de Atendimento Médico nas Unidades Municipais de Saúde de Curitiba.
Esta reportagem foi desenvolvida na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da PUCPR. Confira outras reportagens no link: www.portalcomunicare.com.br/jornalismo-investigativo