Olhares clássicos: uma viagem ao passado

por Beatriz Moschetta Santos
Olhares clássicos: uma viagem ao passado

Programação do Olhar de Cinema conta com exibições de obras clássicas com o objetivo de prestigiar suas trajetórias na sétima arte e promover um novo olhar da geração atual para o cinema do século passado. Entre as sessões, dois filmes com origens e estéticas bastante distintas chamaram a atenção: um vindo do Mali e outro da Argentina.

Por Beatriz Moschetta Santos | Foto: Beatriz Moschetta Santos

Como forma de trazer um novo panorama para obras que fazem parte da história do cinema, o Olhar de Cinema inclui em sua programação títulos de diversas épocas, países e diretores(as). Durante os dias de festival foram reexibidos filmes como: “A Grande Cidade” ( Brasil, 1966 ); “A Greve” ( URSS, 1925 ); “Eu, A Pior de Todas” ( Argentina, 1990 ); “Yeelen – A  Luz” ( Mali, 1987 ); Entre outros. 

Essa iniciativa atrai especialmente espectadores que, em outras circunstâncias, dificilmente teriam acesso a essas obras. Outro destaque foi a escolha dos locais de exibição: muitas sessões aconteceram no Cine Guarani, no bairro Portão, como uma forma de descentralizar o festival e levá-lo para além da região central da cidade.

Crítica: Yeelen – A Luz 

Foto: Divulgação Yeelen

Yeelen na língua Bambara quer dizer luz, porém esse filme retrata muito mais do que somente ela. É uma junção de cores e luzes para descrever diversas relações humanas. Dirigido, escrito e produzido por Souleymane Cissé, Yeelen é considerado um divisor de águas no cinema africano, além disso é reconhecido mundialmente, tendo vencido o Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 1987 e se tornando o primeiro filme africano a conquistar tal destaque. 

O filme é uma adaptação de uma lenda bambara ambientada no Império Mali do século XIII. Acompanhamos a jornada de Nianankoro (Issiaka Kane), um jovem dotado de poderes mágicos e filho do poderoso feiticeiro Soma (Niamanto Sanogo). Tomado pelo medo e pelo rancor, Soma decide caçar o próprio filho, que foge em busca de proteção e conhecimento de seu tio, também dotado de  magia. Ao longo do caminho, Nianankoro se vê com diferentes povos, obstáculos e rituais, até que o inevitável confronto com seu pai se torna realidade.

A cinematografia e ambientação da obra é muito bonita, o diretor tinha a intenção de retratar os mitos e ritos dos povos da região e conseguiu fazer isso de uma forma única, usando elementos naturais como a terra, o fogo e a água. A paleta em tons quentes e contrastes marcantes, cria uma atmosfera quase mística. 

Souleymane Cissé nunca teve a intenção de fazer um filme nos padrões hollywoodianos, ele criou uma estrutura narrativa única que leva o público a conhecer a cultura e as crenças do povo de Mali. Nesse mesmo objetivo, o diretor não queria atores de grandes nomes, ele mesmo fez os testes de elenco e selecionou quem achava ideal para dar vida a seus personagens. Apesar de inexperientes, todos os atores fizeram um trabalho poderoso. 

Souleymane Cissé, reconhecido com um dos grandes cineastas do cinema africano, faleceu em fevereiro deste ano e como forma de prestigiar e homenagear um de seus mais renomados trabalhos, a curadoria do festival selecionou Yeelen para ser reexibido em sua programação. A reexibição não apenas oferece a oportunidade para que novos públicos tenham acesso a essa obra visualmente potente, mas também provoca uma reflexão: por que ainda deixamos em segundo plano um continente tão rico em cultura, história e tradição quando o assunto é a sétima arte? 

Crítica: Eu, a pior de todas

Foto: Divulgação Eu, a pior de todas

Indo para outro lado do globo, na Argentina, María Luisa Bemberg consegue contar uma história emocionante que acontece em um período de grande influência da igreja europeia em seus países colonizados. Baseado no livro “Sor Juana Inés de la Cruz” ou as “Armadilhas da Fé”, de Octavio Paz (ganhador do Nobel de Literatura). 

O filme conta a história real da freira Sor Juana Inés de la Cruz (interpretada por Assumpta Serna), uma das figuras femininas mais importantes da literatura do século XVII, ela era uma poeta e intelectual mexicana, considerada a primeira escritora de língua espanhola na América. Sor Juana vivia no México colonial, no período do vice-reinado espanhol, e foi duramente perseguida pela Igreja e pelo poder político por sua produção intelectual, busca por conhecimento e pela forma como questionava a opressão feminina e a autoridade religiosa.

A narrativa acompanha os conflitos de Sor Juana com o arcebispo e com o novo vice-rei, e principalmente sua relação afetiva de amizade e cumplicidade com a vice-rainha. O filme retrata a história de uma mulher que não tinha medo de mostrar seu propósito, sempre estudando e lendo, Sor Juana dizia que não era nada sem seus livros. Por esse motivo, ela passa a ser vista como uma ameaça pela corte e pela Igreja, que controlavam rigidamente a maneira de crer e pensar dentro do convento.

Sor Juana é vista como uma pecadora por “saber demais” e ir contra as decisões do arcebispo. A forte influência das crenças faz com que o convento  mergulhe em uma onda de miséria e doença, culpando assim “os pecados” da freira que apenas queria ir contra um regime autoritário e de repressão. 

María Luisa Bemberg usa uma linguagem visual muito teatral, com uma direção de arte riquíssima em cores, roupas de época muito bem feitas, cenários fechados e jogos de luz e sombra para recriar o ambiente do convento e da corte, algumas cenas até parecem obras renascentistas. O tom é ao mesmo tempo político e íntimo, com diálogos fortes e uma atmosfera de muita tensão emocional.

Essa combinação de elementos traduz com precisão o propósito da narrativa: denunciar as injustiças de uma época em que o conhecimento e, sobretudo, os sentimentos das mulheres eram reprimidos por uma censura religiosa imposta pelos colonizadores.

Embora contenham histórias muito distintas — uma ambientada no século XIII, no Mali, e a outra no México colonial do século XVII —, ambos os filmes são narrativas de resistência que atravessam o tempo e seguem dialogando com questões atuais. Seja pela luta de um jovem africano contra o destino imposto por forças ancestrais, seja pela batalha de uma mulher por sua liberdade intelectual em meio à opressão religiosa, as duas obras mostram como as formas de resistência ganham novas camadas de significado conforme a história avança.

Assistir a esses filmes hoje, em um festival que celebra o cinema independente e a diversidade de olhares, é um convite a refletir sobre muitos aspectos que ainda seguem tão urgente quanto antes mesmo em diferentes tempos, geografias e culturas.

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