Raízes espalhadas: descendentes okinawanos no Brasil preservam cultura quase extinta

por Ex-alunos
Raízes espalhadas: descendentes okinawanos no Brasil preservam cultura quase extinta

Da queda do Reino de Ryukyu à Okinawa, as tradições da província japonesa são mantidas pelos descendentes que vivem em solo brasileiro

Por Ana Iamaciro, Andressa Carvalho, Carla Tortato e Laís da Rosa

A ilha de Okinawa, localizada ao sul do Japão, tem uma história trilhada por caminhos espinhosos. Situações como a dominação por estrangeiros e desastres naturais fizeram com que sua população migrasse para outras regiões do planeta. Entre os lugares que essas comunidades se estabeleceram está o Brasil. Os descendentes que vivem aqui ajudam na preservação das tradições e idioma da província, mantendo uma cultura viva à meio mundo de distância de seu território original.

Okinawa foi um reino independente entre 1450 até por volta de 1609. O doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Sorgon explica que depois desse período a província ficou em um estado semi independente, em parte sob dominação chinesa e em outra japonesa, situação essa que permaneceu até 1879. A partir desse momento, a ilha de Okinawa foi anexada pelo Japão e passou a sofrer com um período dramático, marcado por catástrofes naturais e pela fome.

Sorgon afirma que a anexação ocorreu em um momento em que o Japão começava a se transformar em um estado moderno, após a restauração Meiji. Portanto, nesse período, os japoneses começam a se preocupar com a soberania nacional, buscando o fortalecimento da economia e do poder militar. Para eles, Okinawa ficava em uma região central no domínio do Mar da China ocidental, o que tornava a província um local estratégico. “Havia o receio de que talvez a China ou outro país ocidental pudesse ter influência sobre Okinawa. Então, o Japão se aproveitou de uma situação em que ele estava próximo e tinha poder militar suficiente para destituir o rei de Okinawa e anexar a província”, diz.

   

Sob o domínio japonês, Okinawa passou por um período de imposição cultural e de proibição de seu idioma, o uchinaguchi. “Você teve inclusive muitos casos de humilhação pública que acontecia quando se falava a língua ou se apresentava alguma dança okinawana, por exemplo”, conta Sorgon.

Samara Konno, Mestra pelo Programa de Estudos Culturais da Universidade de São Paulo (USP), que pesquisa a respeito da imigração japonesa e okinawana explica que a situação em Okinawa ainda estava conflituosa, tanto no sentido político quanto nas condições de sobrevivência. “Eles tinham que pagar altíssimos impostos para o governo japonês e as safras, as colheitas, a plantação e as formas de sobrevivência não estavam fáceis por conta da seca, das pestes e das doenças.”, conta.

Todos esses problemas enfrentados resultam em uma grande imigração de japoneses, por conta de um acordo entre o governo japonês e o brasileiro, que procurava trazer mão de obra japonesa para as fazendas de café no Brasil. Em 1908, no navio Kasato Maru, chegaram ao Brasil 781 japoneses, sendo 325 deles okinawanos

Outro período que marcou a história de Okinawa foi a Segunda Guerra Mundial. De acordo com Sorgon, durante esse conflito cerca de um terço da população da província foi morta. “O Exército japonês meio que tentou usar Okinawa como se fosse uma barreira de entrada para o território japonês. Então, isso vai levar também a uma batalha agressiva em Okinawa na qual muitos civis vão falecer não só pela agressividade do conflito, mas também por uma política pouco preocupada com a sobrevivência dos okinawanos por parte do governo japonês”, explica o historiador.

Durante a Segunda Guerra Mundial era comum que os civis de Okinawa ficassem nas linhas de tiro do confronto. O Exército japonês investiu em uma propaganda que tratava da rendição como algo vergonhoso, propagando a ideia de que era necessário fazer um sacrifício pela pátria. “Houve desde recrutamento de pilotos kamikazes até coisas absurdas como, por exemplo, distribuir granadas para as famílias se suicidaram antes de serem capturadas”, relata Sorgon. Em outros casos, havia cidadãos okinawanos que se escondiam e acabavam sendo bombardeados com as tropas japonesas. Estima-se que durante esse período entre 100 e 150 mil civis okinawanos foram mortos.

Com o final da guerra, tanto o Japão quanto Okinawa ficaram sob domínio norte-americano. Porém, para os okinawanos essa ocupação permaneceu até meados dos anos 1970, enquanto para os japoneses ela permaneceu até 1953. O historiador explica que isso ocorreu devido aos interesses estratégicos do governo dos Estados Unidos em manterem bases em território okinawano.

Durante esse período, afirma Sorgon, houve uma reestruturação econômica de Okinawa. No entanto, ao mesmo tempo era também uma forma de dominação autoritária. “A construção das bases militares provocou a expulsão das pessoas e a desestruturação do setor agrário. Tanto que até hoje é totalmente desproporcional, Okinawa tem aproximadamente, 20% do território dominado pelas bases americanas e abriga quase ⅔ de todas as tropas americanas no Japão”.

Portanto, a reconstrução de Okinawa ocorreu de forma mais efetiva a partir de 1972, quando a província voltou a estar sob domínio japonês. A partir desse momento, afirma o historiador, Okinawa passa por uma série de transformações e passa a ter uma economia mais voltada para o turismo, aproveitando suas paisagens paradisíacas.

A partir dos anos 1970, relata Sorgon, o Japão deixou de ter uma postura de soberania em relação à cultura okinawana. Assim, passou a valorizá-la (principalmente visando o aproveitamento do potencial turístico da região), ao mesmo tempo que a assimilou como uma variante da cultura japonesa mais ampla. Nos anos 80 e 90, Okinawa se torna pop, surgem bandas okinawanas, animes e mangás com temáticas na província. 

Hoje, Okinawa tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto e faz parte de um país desenvolvido. Entretanto, Sorgon comenta que os resquícios da sua história conturbada ainda se refletem atualmente. Até hoje há bases dos Estados Unidos na província. Se por um lado a presença dos norte-americanos é um importante gerador de renda para a ilha, por outro, essa situação causa problemas de poluição, acidentes aéreos e até mesmo casos de violência sexual. Quanto ao Japão, a maioria da população okinawana busca a integração com o país. “Esse passado de preconceito e de violência já está bem distante das gerações mais jovens”, explica o historiador.

A cultura preservada em território brasileiro

Por conta dos descendentes, a cultura okinawana se encontra preservada em diversos países, inclusive no Brasil. De acordo com a antropóloga Samara Konno, é natural que as tradições sejam mantidas por descendentes, visto que são essas comunidades migrantes que fazem questão de assegurar suas questões identitárias. “Há certas tradições que lá [em Okinawa] já não se fazem mais e aqui são mantidas, tradições de 40, 50, 100 anos atrás.” Entretanto, é importante perceber que as culturas não são inalteráveis e incomunicáveis, dessa forma, é comum uma mistura natural e saudável entre as tradições de diferentes países. “A cultura é fluída e está sempre em movimento”, relata.

Entre o Brasil e Okinawa existe um intercâmbio cultural muito forte. Ao mesmo tempo que os descendentes da ilha vem para o Brasil para aprender mais sobre as tradições preservadas aqui (principalmente o idioma), o inverso também ocorre com grande frequência. É comum brasileiros viajarem até a província japonesa para conhecer suas raízes e também para fazer oferendas aos seus antepassados, o que faz parte da espiritualidade. Esse fluxo, explica Konno, ocorre também entre descendentes de okinawanos em outras regiões, como Peru e Havaí, por exemplo.

Crenças e costumes

A diferença cultural entre Japão e Okinawa é grande. O Budismo japonês tradicional faz o culto aos antepassados até o quinquagésimo ano, e quando chega no ano 50 da morte do antepassado eles fazem um rito de passagem com a queima do ihai uma plaquinha preta que simboliza o próprio antepassado. “Essas plaquinhas ficam em um altar chamado butsudan, que é um tipo de altar japonês onde se faz oferendas, orações e conversas com os ancestrais.” Samara Konno explica que no caso dos okinawanos, o culto aos ancestrais é feito até o trigésimo terceiro ano da morte de cada falecido, e quando chega esse dia, a família faz uma cerimônia solene. Mas neste caso, não acontece a queima do ihai, que é a plaquinha [vermelha] com nome e a data de morte do antepassado. No caso de Okinawa, os ihais são mantidos dentro do butsudan, por ser uma questão simbólica. “Se o oratório com as plaquinhas forem pretos, significa que é do budismo japonês, e se forem vermelhas é okinawano”, conta a antropóloga. “Neste caso, os okinawanos atribuem a cor vermelha a um sentido de festa. Eles dizem que o vermelho é alegre, traz vida, enquanto o preto [no budismo tradicional] remete ao luto”.

Os okinawanos são muito ligados a espiritualidade que é mediada pela natureza. A yutá ou kaminchú é uma xamã okinawana que faz a mediação entre o mundo dos mortos e dos vivos. Konno explica que a necessidade de comunicação com os antepassados é muito enraizada e concreta, por isso as yutás e kaminchús são tão valorizadas na comunidade. “Às vezes, é preciso fazer oferendas aos antepassados que precisam de ajuda. Eu conheço casos de pessoas que uniram esforços familiares para juntar dinheiro e comprar passagem para ir até Okinawa (ida e volta) fazer esse tipo de oferenda”, relata Konno.

Um idioma em perigo

Em 2009, o idioma de Okinawa, o uchinaguchi, foi considerado patrimônio cultural em perigo pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura). Por muito tempo, durante o período de dominação japonesa, a língua okinawana foi considerada um dialeto. Era uma forma dos japoneses mostrarem poder, enquanto buscavam cercear a cultura da ilha, explica Ricardo Sorgon.  

Por conta disso, o idioma foi se perdendo ao longo do tempo, correndo o risco de desaparecer. Hoje, é comum que os próprios okinawanos que vivem na ilha, viagem até locais com grande concentração de descendentes – como o Brasil e o Havaí, por exemplo – para aprenderem mais sobre a língua. “O Brasil tem um potencial muito grande para contribuir para preservar a língua okinawana por ter um número grande de falantes”, relata Sorgon.

Nome

Uma curiosidade sobre os okinawanos é que eles  têm uma forma objetiva de diferenciar um descendente de Okinawa de um descendente de outra província. O sobrenome é a forma mais direta de fazer essa identificação. Há muitos nomes okinawanos como Higa, Kanashiro, Okubaro, Tanaka, Uehara e Teruya, por exemplo. 

Além do sobrenome, é possível perceber um okinawano por sua alegria. “Se você ouviu esses sobrenomes você já sabe que é descendente de okinawano. Dessa forma, você consegue definir de fato se é okinawano, mas percepções de abertura, como de alegria e espontaneidade, são válidas também porque essa é uma característica identitária de Okinawa”, relata Samara Konno. 

Também existem muitas famílias que se cruzam, por exemplo, no caso do pai ser de outra província e a mãe ser descendente de okinawana. O sobrenome que geralmente fica, neste caso, é o do pai, mas é comum a pessoa acabar se identificando mais com a parte okinawana, convivendo e participando da comunidade. O fato de uma pessoa não ter sobrenome de origem okinawana, não significa que ela vá ser discriminada, é apenas exemplo de as diferenças étnicas também podem ser reconhecidas através dos sobrenomes.

Culinária Típica

Um dos pratos mais conhecidos da culinária okinawana é o Okinawa Sobá, uma espécie de lamen feito de carne, legumes, macarrão de farinha (tradição chinesa) e porco frito, servidos em forma de sopa com um caldo de peixe. O prato é tão reconhecido que ganhou um evento intitulado “Festival do Sobá”, que acontece em São Paulo e outros estados do país, como Mato Grosso do Sul, onde também é muito famoso.

Aos olhos ocidentais, as comidas típicas okinawanas podem parecer peculiares. “Pela dificuldade em se obter alimentos em Okinawa (antigamente) a população costumava aproveitar todas as partes dos animais, inclusive patas e bucho”, explica Konno. O Hijá no Shiru, por exemplo, é uma sopa feita à base de carne de cabrito e possui um forte cheiro característico. Esse odor se deve à queima do pelo do animal durante o preparo. 

Konno relata que durante a sua pesquisa sobre a imigração okinawana, uma descendente explicou para ela que essa sopa era consumida na comunidade mais pela memória afetiva do que pelo sabor do prato em si. “Era uma forma de lembrar das dificuldades que seus antepassados passaram em Okinawa”, relata .

Ao ritmo dos tambores

A cultura okinawana é conhecida por ser  alegre e festiva, marcada pelo ritmo de tambores. A batida manifestada pelo taikô (tambor japonês) é o que embala as apresentações do grupo Ryukyu Koku Matsuri Daiko (RKMD), de Curitiba. 

Natalie Yumi Nabeshima, líder da filial de Curitiba explica que o primeiro grupo do Brasil surgiu em São Paulo na Vila Carrão em 1998, desde então, diversas filiais foram criadas pelo país.

O nome do grupo é Ryukyu Koku Matsuri Daiko. Ryukyu Koku significa o reino de Ryukyu. Antes de Okinawa ser anexada ao Japão, se chamava Reino de Ryukyu. Matsuri Daiko significa tambores festivos. Então o significado inteiro do nome do  grupo é “Tambores festivos do Reino Ryukyu”. 

O símbolo que representa o grupo não é apenas um desenho aleatório. Natalie explica que é um kanji estilizado que significa coração (kokoro em japonês) e o design se assemelha à bandeira de Okinawa.

Dentre as músicas que o público mais gosta está Mirukumunari. “Geralmente o público gosta das músicas mais alegres, porque nós interagimos mais, sorrimos mais, pedimos palmas do público”, conta Natalie. 

Uma canção bastante apreciada é Sanshin no Hana. O RKMD foi trazido por um senhor chamado Naohido Wurasaki ou Wurasaki Sensei (professor Wurasaki). A líder conta que ele gostava muito da música, então sempre que eles tocam, é uma homenagem ao professor.

Além de Sanshin no Hana, a letra de Toki Wo Koe é muito importante porque fala sobre a guerra  em Okinawa. “Ela tem um significado muito forte, uma letra muito forte e tem um significado muito especial para a gente”, explica Natalie.

O principal objetivo do grupo é difundir a cultura okinawana, então, qualquer pessoa que se interesse por Okinawa pode participar. Natalie conta que a pessoa precisa, apenas, ter vontade de aprender e disposição para treinar. “Eles vão aprender as coreografias, a pegar no instrumento, e etc. Os iniciantes precisam treinar por um ano para poder se apresentar no grupo”, relata. 

A idade mínima para entrar para a equipe é de 6 anos. No Paraná, o grupo Ryukyu Koku Matsuri Daiko conta com cerca de 100 integrantes, no Brasil todo são aproximadamente 700 participantes.