Rua Mateus Leme e a ascendência dos brechós

Na região central de Curitiba, a rua se transformou em uma vitrine para a moda circular.
Por: Lara Wilsek, Leticia Seixas e Maria Júlia Neves.
A rua Mateus Leme, no centro de Curitiba, virou uma espécie de corredor da moda circular. Basta alguns passos para dar de frente com um brechó diferente. Um do lado do outro, alguns praticamente grudados, ocupando esquinas, lojas antigas e casas adaptadas. Estão por toda parte e cada um parece contar sua própria história. Pequenos, grandes, organizados ou mais caóticos, mas todos têm em comum o desejo de fazer circular o que ainda pode ter vida útil e estilo.
A capital tem se consolidado como um dos principais polos de moda circular do país. Prova disso é o crescimento expressivo do número de brechós na cidade, apenas em 2024, o Paraná registrou a abertura de 132 novos estabelecimentos voltados à revenda de roupas, superando a média anual de 90 registros dos anos anteriores. Curitiba lidera esse avanço, à frente de outras cidades como Foz do Iguaçu e Londrina, impulsionada por um público cada vez mais atento às práticas de consumo consciente.
Em uma sexta-feira, por volta das 11h30 da manhã, entramos em um dos brechós que, à primeira vista, lembrava uma loja de shopping: araras bem organizadas, manequins nas vitrines, música ambiente e um espaço amplo, com luz natural entrando pelas janelas. Entre os vários que visitamos, outros dois despertaram a atenção pelas atmosferas singulares. O Brechó Girassol, com enfeites florais por todo o ambiente, fazendo referência ao seu nome e o Cabide Caramelo, que ostenta um piso xadrez preto e branco e um ar descolado cheio de personalidade.
O Cabide Caramelo, segundo a fundadora Mariana Marins, foi criado em julho de 2019. Na época, ela trabalhava em um bar, estava cansada da rotina e sempre teve uma paixão por moda e curadoria de peças. O brechó começou de forma despretensiosa, a partir do desapego de roupas pessoais e da família, funcionando inicialmente apenas no Instagram. Segundo ela, o diferencial do brechó está justamente no carinho e dedicação colocados em cada etapa do processo: desde a seleção das roupas escolhidas, tecido, marca ou estilo, com uma atenção especial para peças vintage, até o preparo para revenda.
“Todas as peças passam por uma higienização cuidadosa, costuras são refeitas se necessário, bolinhas e pelinhos são retirados, e ainda aplicamos um cheirinho especial para que estejam prontas para uso imediato. Muitas delas ganham uma nova vida após esse “glow up”.”
A curadoria é feita com rigor, afirma Mariana, cada peça comprada ou trocada é avaliada na loja, passa pelo processo de higienização e ajustes, e só então volta a circular. Em relação à política de trocas, aceitam devoluções em até sete dias, desde que a peça esteja com a etiqueta, ainda assim, é comum que algumas retornem com sinais de uso, o que pode explicar por que muitos brechós optam por não realizar trocas.
A fundadora também diz atender um público bastante diverso, de diferentes faixas etárias, desde jovens em busca de roupas estilosas para eventos até senhoras procurando peças mais confortáveis. Mas o público-alvo principal está entre os 25 e 45 anos.
Passamos cerca de duas horas explorando a rua, totalizando um número de dez brechós visitados, cada um com sua identidade, proposta e curadoria. Ao longo do caminho, ficou claro que é possível encontrar roupas para todo tipo de gosto, estação e fases da vida. Jaquetas de inverno pesadas, vestidos de festa, roupas infantis, sapatos de couro, bolsas e acessórios vintage. É impossível sair sem achar algo único, seja pelo estilo, pelo preço, ou pela simples emoção de encontrar algo que parece ter esperado por você.
A moda circular por aqui já deixou de ser uma alternativa marginal. É prática, acessível e virou parte do cotidiano de muita gente. Ela abraça todos os públicos de diferentes classes sociais, desde jovens estudantes atrás de roupas com economia até senhoras que garimpam peças únicas com paciência de colecionadoras. Também tem os curiosos de primeira viagem, que chegam ainda com certo receio, mas saem com um novo olhar.
Esse movimento reflete uma mudança de comportamento, especialmente entre os consumidores mais jovens. A Geração Z tem sido um dos principais motores do crescimento da moda de segunda mão em Curitiba. Influenciados por questões ambientais, econômicas e culturais, os jovens curitibanos têm buscado cada vez mais alternativas sustentáveis de consumo. A forte presença de universidades na cidade também contribui para consolidar essa cultura, com estudantes optando por brechós como forma de economizar e, ao mesmo tempo, expressar individualidade por meio de peças únicas.
Além de atrair um público diverso, o setor também se mostra economicamente relevante para a cidade. Segundo dados do Sebrae, cerca de 78% dos brechós em Curitiba são geridos por microempreendedores individuais (MEIs), fortalecendo o comércio local e promovendo a economia solidária. Um exemplo desse crescimento é o da Amazon Moda Circular, que reportou um aumento de 25% no faturamento apenas no primeiro trimestre de 2024, demonstrando a viabilidade econômica do segmento.
No meio do entra e sai de clientes, um movimento relativamente bom para o horário que estávamos passeando, a moda circular se impõe como uma resposta, quase um grito silencioso, ao modelo insustentável da indústria têxtil. Em vez de consumir, usar e descartar, o ciclo se estende: alguém usou, alguém enjoou, alguém doou, e alguém, talvez você, encontre ali uma peça que te encante. Um casaco que sobreviveu a invernos passados, uma calça que já dançou muito por aí.
Portanto, a lógica é outra. Sai o consumo desenfreado, entra a escolha com propósito. Não é só sobre preço baixo, é sobre diminuir o impacto ambiental de uma indústria que figura entre as mais poluentes do mundo. É sobre evitar que toneladas de roupas em perfeito estado terminem em lixões. É também sobre identidade, se vestir com algo que não saiu de uma linha de produção padronizada, mas de uma seleção aleatória, quase mística, de experiências acumuladas.
Uma história marcante para a dona do Cabide Caramelo ilustra bem o valor afetivo que muitas peças carregam. Em uma ocasião, uma cliente encontrou no brechó exatamente o mesmo modelo de calça que usava quando foi pedida em casamento, um momento que havia acontecido cerca de 25 anos antes. Embora a equipe acreditasse que se tratava apenas de um modelo idêntico, a cliente estava convicta de que era a mesma calça.
As vantagens da moda circular são muitas: economia, exclusividade, sustentabilidade, fortalecimento de pequenos negócios, incentivo à criatividade e ao reaproveitamento. Comprar em brechós é, também, dar um passo para fora do piloto automático das coleções impostas pelas grandes marcas. É reaprender a montar o próprio estilo sem manual.
Mas os desafios também existem. Ainda há preconceito com o “usado”, falta de informação sobre o impacto real da moda tradicional e um certo esforço necessário para garimpar o que realmente vale a pena. Nem todo brechó é organizado, nem toda peça está em bom estado, e encontrar “achadinhos” pode exigir tempo e paciência. Além disso, ainda falta incentivo público para ampliar e estruturar melhor esse mercado, que, mesmo potente, funciona muito na base da resistência.
A cidade tem promovido eventos voltados à moda sustentável. Nos dias 12 e 13 de abril de 2025, Curitiba sediou o Encontro Moda Circular, que reuniu mais de 15 brechós e lojas voltadas ao reaproveitamento de roupas. Além de incentivar o consumo consciente, o evento teve caráter social, toda a renda arrecadada foi destinada a ações beneficentes. A iniciativa reforça o papel da moda circular não apenas como alternativa de consumo, mas também como agente de transformação social.
Eventos como o Saí do Armário, que acontece mensalmente na Galeria Green Center, localizada no centro de Curitiba, também contribuem para fomentar o setor. Reunindo cerca de 65 expositores e mais de 12 mil peças por edição, a feira tornou-se referência em moda circular na capital. Ao oferecer uma grande variedade de roupas e acessórios, esses eventos estimulam o reaproveitamento de peças, o empreendedorismo local e o fortalecimento de uma cadeia de moda mais sustentável.
Com iniciativas assim, Curitiba se destaca nacionalmente como cidade-modelo na promoção da moda circular. A concentração de brechós na Rua Mateus Leme ilustra bem esse cenário, mais do que uma tendência estética, trata-se de uma reconfiguração dos hábitos de consumo e da relação das pessoas com suas roupas, uma resposta direta aos impactos sociais e ambientais da indústria da moda tradicional.
Aqui te indicamos alguns brechós para você conhecer e uma espiadinha por dentro de sete brechós na rua: