As infâncias perdidas e o desafio de combater a pedofilia

por Izabelly Lira
As infâncias perdidas e o desafio de combater a pedofilia

A cada dia, pelo menos 20 crianças são atendidas no SUS no Brasil, após terem sido vítimas de violência sexual, de acordo com o Ministério da Saúde

Por Natalia Filippin e Thaise Borges

“Eu não gosto de falar sobre isso…” O medo, a vergonha, o trauma. Tudo misturado em uma pessoa que não escolheu se sentir assim. Sandra tem 27 anos, é farmacêutica. Hoje ela é adulta e faz questão de olhar apenas para o futuro. Sua infância não foi fácil, e não só porque perdeu o pai cedo em um acidente de carro, mas porque ela foi durante quatro anos abusada pelo padrasto.

Sandra tem os cabelos curtos, diz que não consegue mais deixá-los crescer. “Ele me chamava de Rapunzel. Para mim era só uma brincadeira, mas com o tempo eu vi que ele queria mais, muito mais do que uma criança poderia fazer”. Era um olhar, um sorriso, um toque. Sandra conta que já não conseguia mais brincar e não dormia bem. O tempo em que estaria livre para se divertir, permanecia na escola ou no trabalho da mãe. A sua própria casa, que deveria ser local de alegria, era apenas de escuridão.

A pedofilia, segundo o dicionário Aurélio é: “que ou aquele que sente uma atração sexual patológica pelas crianças”. A Organização Mundial da Saúde (OMS), através do Manual de Classificação Estatística Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Morte, traz a pedofilia no capítulo de transtornos mentais, no que tange às Neuroses, Transtornos de Personalidade e outros Transtornos Mentais Psicóticos.

Para a psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Maria Cristina Neiva de Carvalho, a pedofilia é um quadro de alterações psíquicas, considerado uma doença, já que apresenta disfunções cerebrais relacionadas a conceitos e impulsos. Essas disfunções acabam se traduzindo no que é conhecido como comportamento pedófilo, podendo se transformar, com o tempo, em agressores sexuais ao realizarem na prática suas fantasias, porém nem todos necessariamente as fazem. Bem como, nem todos aqueles que agridem sexualmente de crianças são necessariamente pedófilos no sentido clínico.

O sintoma principal é uma pessoa que sente atração, desejos, aproximações de cunho sexual com crianças. “Eles têm essa vivência em que eles precisam satisfazer aquela necessidade. Como se ele não conseguisse controlar aquilo”.

A manifestação da sexualidade é uma questão da natureza humana, em todos os estágios de nossa vida. Mas, segundo Maria Cristina, a forma a quem se destina a nossa sexualidade, é de maneira que seja prazerosa para os dois lados. E o que acontece na pedofilia é que ela é parcial, unilateral. Aquele impulso é destinado a uma pessoa que está em desenvolvimento, que não tem a condição de escolha, não tem o conhecimento do que se trata e ainda não teve o desenvolvimento cognitivo suficiente para entender o que está acontecendo. “Os pedófilos utilizam de artifícios, estratégias. Eles conhecem a criança, conhecem as fantasias infantis, a mente imatura. E é aí que eles veem a oportunidade de suprir seus desejos, por meio de histórias de princesas, as presenteia, por exemplo, com fantasias para ver o corpo nu da criança, etc”.

Terezinha tem 58 anos, ela é avó de Julia, de três anos. Ela conta que é ela quem cuida do bebê, afinal seu filho, o pai de Julia foi preso por abusar sexualmente durante dois anos da irmã mais velha, Stephanie, de nove anos. “Dói em mim. Ele destruiu uma infância, uma vida. Essa ferida é eterna e não está só nela”.

Foto: Natalia Filippin

A Lei

Em Curitiba, a delegacia especializada que trata deste tipo de crime é o Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima de Crime, o Nucria, que conta com policiais treinados e psicólogos para avaliar as condições das crianças e adolescentes vitimados por abuso sexual e qualquer outro tipo de crime a elas realizado.

Para Sérgio Artur M. Ferreira Filho, psicólogo do Nucria, existem diferenças entre a pedofilia e a violência sexual. A pedofilia, na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), diz respeito aos transtornos de personalidade causados pela preferência sexual por crianças e adolescentes e não necessariamente o pedófilo pratica o ato de abusar sexualmente de meninos ou meninas. O Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não preveem redução de pena ou da gravidade do delito se for comprovado que o abusador é pedófilo.

A advogada Caroline Gomes explica que a pedofilia não é considerada crime no Brasil. “Confunde-se muito o crime de abuso sexual com a pedofilia. A pedofilia é um diagnóstico clínico, não é um diagnóstico de atos de crimes. O sujeito pode ser um pedófilo e nunca chegar a encostar a mão em uma criança”. A Organização Mundial da Saúde estima que 20% das meninas e mulheres de até 18 anos sofram algum tipo de violência sexual no mundo.

Já a violência sexual praticada contra crianças e adolescentes é uma violação dos direitos sexuais porque abusa e explora do corpo e da sexualidade de crianças.  A cada dia, pelo menos 20 crianças de zero a nove anos de idade são atendidas nos hospitais que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) no país, após terem sido vítimas de violência sexual, de acordo com o Ministério da Saúde.

Abaixo crimes envolvendo a pedofilia, segundo o ECA:

Segundo o psicólogo, o pedófilo envolve a criança de uma maneira em que ela não consegue mais sair. “Ele diz que o que eles fazem é um segredo só deles, que se a criança contar para alguém ele mata a mãe dela, familiares ou ela mesmo. É um jogo, uma chantagem, e o sofrimento é muito grande”. O psicólogo ainda aponta que é possível diferenciar duas formas de abuso sexual: sem contato físico e com contato físico, sendo os sem contato físico os atos verbais, telefonemas obscenos, exibicionismo; enquanto os com contato físico seriam os atos físicos genitais, sadismo e pornografia.

Maria Cristina também ressalta esse viés de chantagem, já que a criança é induzida a guardar o segredo, porém, às vezes, a criança fala e ninguém acredita. Maria ainda resalta que tem predominância de vítimas do sexo feminino, sendo que os responsáveis na maioria dos casos são pessoas do convívio do menor, tendo pais e padrastos como os responsáveis pela vitimação. “Cerca de 80% acontece dentro de casa, dentro das relações familiares, prioritariamente homens. Sendo meninas a maioria dos casos denunciados”. Ela conta que a pedofilia contra meninos é velada por conta do medo familiar que se associe à homossexualidade.

Um dado relevante é de que a notificação do ato abusivo junto à delegacia especializada (NUCRIA), na maioria das vezes, é realizada pela mãe ou pai biológico. A renda familiar gira em torno de 02 a 03 salários mínimos, apesar de constatarem-se casos em famílias mais abastadas financeiramente.

Segundo o Balanço das Denúncias de Violações de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos do Governo Federal, em 2016, entre as violações registradas contra crianças e adolescentes estão negligência, que mostra a ausência ou ineficiência no cuidado (com 37,6%), seguida de violência psicológica (23,4%), violência física (22,2%) e violência sexual (10,9%).

Ainda segundo o balanço, a casa da vítima é o local onde concentra a maior porcentagem de violações, seguido da casa do suspeito com 26%. Outros locais somam 8% (igrejas ou templos religiosos, local de trabalho, entre outros), rua com 7%, escola com 3% e 2% órgãos públicos.

Sérgio Arthur afirma que a pedofilia em si não é crime no Brasil, mas se comprovado algum ato criminoso, como, por exemplo, tocar o genital da vítima, é prova cabal do fato e o indivíduo fica preso de oito a quinze anos, em regime fechado. “A pedofilia não tem cura, mas tem controle, seja medicamentoso ou terapêutico. Eu ainda afirmo que a punição para eles, caso tenha, são de anos, para essas crianças a pena é perpétua! Isso nunca vai cicatrizar”. O psicólogo ainda relata que só neste ano de 2017 já atendeu mais de 300 casos no Nucria.

 

Apoio às vítimas

 

– Constituição e ECA: O Governo Federal, desde o início da década de 80, vem implantando políticas públicas em prol da defesa dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, os quais foram consolidados através da promulgação da Constituição Federal/88 e do Estatuto da Criança e do Adolescente/93, com o objetivo de enfrentamento à violência sexual.

O objetivo é o de oferecer um conjunto de procedimentos técnicos especializados para atendimento e proteção imediata às crianças e aos adolescentes vítimas de crimes como o abuso e a exploração sexual, bem como a seus familiares, proporcionando-lhes condições para o fortalecimento da autoestima, superação da situação de violação de direitos e reparação da violência vivida.

– Nucria: O Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crime de Curitiba tem papel fundamental no referido atendimento, combatendo à impunidade.

Atendimento das vítimas de violência sexual ampliando a defesa dos seus direitos e através da denúncia dos agressores para os sistemas de segurança pública e de justiça, objetivando a responsabilização criminal.

Enxugue Essa Lágrima: Propõe a atuação, especialmente de instituições de ensino, de conselhos regionais de psicologia, de medicina, de pedagogia, de associações de psiquiatria, de terapia ocupacional e de serviço social para que se mude este cenário. Em Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR, UniBrasil, Universidade Tuiuti do Paraná e Uniandrade.

Essas instituições recebem vítimas da violência sexual infantojuvenil em suas unidades de atendimento e em seus consultórios. A atuação é diretamente com a vítima que, após ser encaminhada pelo juiz ou promotor, recebe o apoio psicológico dos voluntários do Programa. Janice Strivieri Souza Moreira, psicóloga e professora da PUCPR, fala que no projeto Enxugue Essa Lágrima eles recebem vítimas de zero a 18 anos. “É uma chance que essas crianças e adolescentes tem para amenizarem suas feridas e é uma chance ainda maior para nós, e os alunos quase formados, em ajudar esses anjinhos”.

18 de maio: Neste dia, em 1973, uma menina de oito anos, de Vitória (ES), foi sequestrada, violentada e cruelmente assassinada. Seu corpo apareceu seis dias depois, carbonizado e os seus agressores nunca foram punidos.
Com a repercussão do caso, e forte mobilização do movimento em defesa dos direitos das crianças e adolescentes, 18 de maio foi instituído como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Desde então, esse se tornou o dia para que a população brasileira se una e se manifeste contra esse tipo de violência.

Luz na Infância

Em outubro deste ano o Brasil realizou sua maior operação de combate à pedofilia. Foram mais de mil policiais civis de 24 estados e do Distrito Federal, que cumpriram 157 mandados de busca e apreensão na Operação Luz na Infância.

Foram apreendidos computadores, celulares, pen-drives. Em seis meses, a investigação rastreou mais de 150 mil arquivos para chegar aos alvos. O objetivo era apreender esse material, analisar e depois indiciar e prender os criminosos, mas, durante as buscas, os policiais encontraram situações de flagrante: fotos e vídeos de pedofilia produzidos, armazenados ou compartilhados nos computadores dos suspeitos. Foram presas 108 pessoas. Entre os detidos no Paraná, por exemplo, havia uma mãe que mantinha relações com o filho de 11 anos enquanto o padrasto gravava.

A investigação foi coordenada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, e contou com a Cooperação da Embaixada Americana.

Denuncie

Disque 100, um canal de denúncias disponível para a população e que pode ser acessado gratuitamente em todo o território nacional. O serviço funciona 24 horas e a denúncia pode ser anônima.

A Polícia Federal (PF), em parceria com a SaferNet Brasil, tem um formulário online para tornar mais rápido o recebimento de denúncias de pornografia infantil, além de crimes raciais, preconceitos contra minorias e incentivo ao genocídio, praticadas por meio da internet: