Apagamento histórico da ditadura militar representa ameaça à democracia brasileira

por Ricardo de Siqueira
Apagamento histórico da ditadura militar representa ameaça à democracia brasileira

Historiadores identificam pouco esforço público para informar a população sobre os crimes e danos do golpe de Estado que completa 60 anos neste mês de abril

Por Isabela Brandes de Athayde, Pablo Ryan e Ricardo de Siqueira | Fotos: Pablo Ryan e Ricardo de Siqueira

Neste mês de abril, o golpe militar que destituiu o então presidente João Goulart e deu início a um regime autoritário no país completa 60 anos. Historiadores afirmam que o período sofre uma espécie de apagamento e que isso é prejudicial para a democracia. A falta de investimento financeiro na preservação de memoriais e a ausência de uma abordagem sistemática do assunto nas escolas espelham um estado que convive com uma onda conservadora que questiona o sistema democrático e que nega o autoritarismo da ditadura militar.

Décadas após o movimento que deu início à ditadura militar, a história registra novos episódios que relembram o passado autoritário que o país e o estado já viveram. Entre eles estão os protestos antidemocráticos que marcaram o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, passando pelos acampamentos em frente aos quartéis militares após a eleição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, até a invasão dos prédios do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF). Curitiba presenciou todos esses movimentos, e o Paraná teve um grande número de pessoas que participaram da tentativa de golpe em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.

Segundo a Polícia Rodoviária Federal foram cerca de 33 ônibus que saíram do estado tendo os atos golpista de Brasília como destino. O grupo contou com o financiamento de empresários e pessoas jurídicas. Enquanto o autoritarismo vem ganhando força nos discursos conservadores, em contraponto, não há um interesse massivo em preservar a memória dos fatos que ocorreram na ditadura, que serviriam de apoio na defesa da democracia.

Poucas pessoas sabem, mas Curitiba tem um memorial sobre a ditadura militar. Nomeado como Lugar de Memória, o LUME nasceu na intenção de cumprir uma resolução da Comissão Estadual da Verdade.

“Identificar, preservar, fazer o tombamento, desapropriar, se for bem privado, e transformar em centro de memória todos os imóveis urbanos e rurais que foram centros de graves violações dos direitos humanos”
Relatório da Comissão da Verdade: Vol. 2

Atualmente localizado no prédio que já abrigou o presídio do Ahú, destino de muitos dos civis presos pela ditadura, o LUME ocupa apenas uma pequena parte do edifício histórico (que preservou apenas a fachada e sua estrutura principal), enquanto o restante do espaço abriga departamentos do Tribunal de Justiça. O projeto tem como objetivo sensibilizar e contribuir para uma política de preservação da memória de episódios repressivos da história do país e do estado.

Antigo Presídio do Ahú na época da Ditadura Militar. Foto está presente no memorial LUME

O mesmo local da foto acima, hoje pertencente ao Tribunal de Justiça

A historiadora do Ministério Público do Paraná e coordenadora do LUME, Cláudia Hoffmann, afirma que no Brasil não há um trabalho adequado de preservação da memória histórica. No Paraná, os resultados eleitorais mais recentes indicam a proximidade da população com movimentos conservadores, que nos últimos anos flertaram com o autoritarismo.

Para a coordenadora, o fato de essa memória não ser trabalhada suficientemente nas escolas contribui para a formação de um pensamento superficial e restrito sobre a ditadura. Segundo Hoffmann, os holofotes voltados para o contexto paulista e carioca na ditadura acabaram deixando de lado o que o Paraná também vivenciou durante o período.

Os integrantes da Comissão da Verdade no Paraná apuraram diversos crimes cometidos contra os direitos humanos, desde a remoção de indígenas a força para a construção da Hidrelétrica de Itaipu até perseguições políticas dentro da Universidade Federal do Paraná. Todos esses exemplos estão presentes no relatório final da comissão e também no memorial, colados em cartolinas, material que não é resistente e nem apropriado para uso museológico. Mas, de acordo com a historiadora, essa foi a única forma possível de expor as informações dentro dos recursos financeiros disponíveis. Cláudia Hoffmann explica que o relatório final da comissão foi organizado em um documento dividido em duas partes, mas não houve nenhuma ação do estado para que esse material fosse incluído como didático para os estudantes paranaenses. 

Sala de exposição no LUME

A exposição busca expor a repressão sofrida por minorias marginalizadas

Para o professor de História da Universidade Federal do Paraná Dennison de Oliveira, atualmente há um forte negacionismo da ditadura, não no sentido de que ela não existiu, mas de que não teria sido autoritária e que teria punido apenas grupos criminosos. Ele explica que o principal facilitador desse discurso é a memória popular de que a ditadura “matou pouco”, que ainda havia algum tipo de eleição e que, no início, o regime proporcionou avanços sociais e econômicos, mesmo que em seguida tenha se transformado em um “desastre econômico”.

Não há uma ideia cristalizada e concreta de uma memória popular que seja contra a ditadura. A falsa aparência de uma democracia dentro do regime faz com que a negação da ditadura seja mais fácil.”
Dennison de Oliveira
Professor de História da UFPR

É a partir da crise econômica e das denúncias de tortura que parte da população começa a se posicionar contra a ditadura, dando início posteriormente a um dos maiores movimentos de massa da história do Brasil, as Diretas Já. Curitiba foi a primeira capital a realizar um ato a favor do movimento que serviu como piloto para os demais comícios que viriam a acontecer nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.

O historiador Dennison de Oliveira reforça a observação da coordenadora do LUME: a falta de politização e de políticas educacionais que buscam compreender esses eventos históricos acaba formando uma sociedade suscetível à influência de discursos que negam os crimes e danos provocados pelo regime autoritário.

Sala de exposição de livros do Lugar de Memória.

Segundo Oliveira, a movimentação das Forças Armadas e de grupos autoritários no governo Bolsonaro são perigosas e exemplo de um novo modelo de golpismo, marcada por sinais de uma ditadura que ainda não cicatrizou. As ameaças, desta vez, chegam em forma de questionamento sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas e sobre as instituições da República. Por outro lado, o professor também enxerga perigo para a democracia brasileira na postura de conciliação do governo federal com os militares. “É urgente uma reforma política nacional de defesa para despolitizar as forças armadas brasileiras”, afirma Oliveira.

A Comissão Estadual da Verdade foi criada em 2012. Aqui você pode conferir o relatório produzido pela comissão