Militarização dos colégios públicos traz impactos incertos sobre formação dos jovens paranaenses

por Leticia Fortes Molina Morelli
Militarização dos colégios públicos traz impactos incertos sobre formação dos jovens paranaenses

Consultas públicas e pesquisas de satisfação sobre o sistema cívico-militar ouvem a opinião de pais e responsáveis, mas desconsideram a opinião dos estudantes  

Por Juliane Capparelli, Letícia Bonat, Letícia Fortes e Maria Eduarda Souza | Foto: Letícia Bonat

O Plano Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) foi a principal aposta do governo de Jair Bolsonaro para a educação. Com o objetivo de implementar 216 escolas cívico-militares no Brasil até 2023, o governo federal se comprometeu a investir cerca de um milhão de reais para cada escola estadual que adotar o modelo cívico-militar, ajudando-as no pagamento dos militares, na melhoria da infraestrutura e na distribuição de materiais escolares e uniformes. No Paraná, esse modelo foi rapidamente implementado após  flexibilização dos critérios de adoção do sistema cívico-militar para as escolas estaduais, especialmente as localizadas em regiões consideradas violentas. Para o doutor em Educação Marcos José Zablonsky, professor titular dos cursos de Relações Públicas, Publicidade e Propaganda e Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), a melhor maneira de reduzir a violência nas escolas é investir em práticas restaurativas de educação, capazes de construir uma relação entre estudantes, professores e monitores com base no respeito e na afetividade, e não no temor e na autoridade. Confira a seguir a entrevista na íntegra:

 

Por quais motivos você acredita que a maioria da população, por meio de consultas públicas, decidiu pela aprovação do modelo cívico-militar nas escolas no estado em 2020? O senhor acredita que a conjuntura social e econômica teve impacto na opinião pública nesse caso?

Sim, acredito que a política e a economia tiveram bastante impacto; mas, primeiro, é preciso entender o contexto em que essas escolas cívico-militares foram implementadas. Essa implementação do modelo cívico-militar nas escolas estaduais foi decidida, quase que em afogadilho, pela Assembleia Legislativa do Paraná e pelo governo estadual, que possui uma ampla base de apoio na Assembleia. Não houve muita divulgação sobre a consulta pública que a Assembleia realizou sobre as escolas cívico-militares, até mesmo por parte da própria imprensa. O que percebemos é que a eleição do presidente da República Jair Bolsonaro resgatou um discurso conservador, de ultra direita e diretamente ligado ao militarismo, até mesmo flertando com o período histórico da ditadura militar no Brasil. Nesse cenário, o alinhamento ideológico entre o governador Ratinho Jr. e o presidente Bolsonaro, assim como a postura conservadora dos três senadores que representam o Paraná atualmente, colocou as escolas cívico-militares como perspectivas para o projeto dessa gestão para a educação no Brasil. Somada a uma falta de mobilização da sociedade para refletir sobre os pontos positivos e negativos dessas escolas cívico-militares, a maioria dos pais que votaram em consultas públicas basicamente decidiram a favor ou contra esse modelo, sem um debate adequado para compreender a questão. Esses pais, portanto, optaram pela adoção de ex-militares na educação para criar uma cultura hierárquica dentro de escolas localizadas em regiões mais violentas e com altas taxas de evasão escolar, buscando disciplinar esses jovens e aumentar a permanência deles na escola. Porém, se o modelo militarizado fosse tão bom, não acredito que teríamos apenas um colégio militar no Paraná, que é bastante elitizado e aceita apenas os jovens melhor qualificados em um processo de seleção interno. 

 

Existe algo que explique essa rápida concordância da população para a implementação do modelo cívico-militar nas escolas, mesmo sem dados oficiais que comprovem a efetividade das mesmas?

Existe sim, é que simplesmente não se conversou com a população antes da implementação das escolas cívico-militares. Não foi exposto o dever da escola pública de acolher a todos, independente do nível de escolaridade, da idade ou das reprovações anteriores de alguns estudantes. Enfim, não se discutiu o principal, que é a melhoria das escolas públicas estaduais sem a necessidade de ter militares da reserva dentro das escolas, até porque um ex militar tem pouco ou quase nada em termos de formação pedagógica para lidar com estudantes. Esse olhar para uma educação mais punitiva certamente trará resultados negativos para os estudantes no futuro, embora parte dos pais desses jovens apoiem esse tipo de escola por possuírem memórias e vivências do período da ditadura militar e de um modelo de educação muito mais rígido do que o atual. Os jovens hoje são questionadores, eles não querem ouvir um simples ‘não’. Eles exigem dos adultos um ‘não’ seguido de um ‘porquê’, e não pode ser um ‘porquê’ qualquer, como ‘porque sou seu pai’. É preciso justificar, articular suas razões, e adotar uma atitude que seja condizente com a restrição ou com a permissão que você aplicou. Hoje, respeito não está diretamente ligado à autoridade dos pais, como era no passado; está muito ligado à afetividade, à transparência da conversa familiar.

 

Na sua visão, a militarização dos colégios públicos pode motivar os jovens a seguirem uma formação mais militar ou técnica e distanciá-los das universidades, ou não existe uma relação entre essas variáveis?

Se olharmos para os estudantes de escolas militares, esses jovens apresentam um desempenho escolar excelente, pois além de passarem por uma seleção antes de entrarem nessas escolas, o grau de exigência e competitividade interna é constante para que eles mantenham a bolsa de estudos ali. Então, esses jovens tendem a acessar a universidade sem muita dificuldade, apenas a escolha das áreas de estudo que tende a ser menos criativa e mais técnica, e a maioria acaba seguindo a carreira militar, em escolas como a AFA e o ITA. Essa seleção não acontece nas escolas cívico-militares, que nada mais são que escolas públicas militarizadas. A disciplina militar é diferente, e eu fico imaginando como essa formação rígida em termos de comportamento pode refletir no futuro desses jovens, pois acredito que muitos são inibidos de opinar na escola. Eles não aprendem a opinar e nem a se exporem, porque são condicionados à questão hierárquica dos militares. É assustador encontrar pessoas com mentes flexíveis e criativas que não podem se expressar livremente por inserirem-se em um ambiente militar. Elas não podem questionar seus superiores, mesmo que essas sugestões sejam mais viáveis do que a ordem dada. Um militar superior não se importa se seu semelhante tem razão ou não no argumento apresentado, ele apenas pergunta ‘você está questionando minha ordem’? Não há uma relação de diálogo, e é muito preocupante educar jovens, em fase de desenvolvimento intelectual e de caráter, com uma mentalidade tão repressiva e pouco criativa como essa.

 

Existe alguma prática educacional mais adequada, que poderia substituir a implementação das escolas cívico-militares?

Já há uma luta muito interessante na educação a favor de diversas práticas, inclusive em parceria com o Ministério Público, que também se preocupa com o aumento de jovens infratores nos tribunais e com a perda na qualidade de vida desses adolescentes em virtude do crime. E é através de uma boa educação que o Ministério Público atua, em conjunto com os professores, para reduzir o número de jovens nos tribunais. Uma dessas estratégias para aprimorar a educação pública no Brasil é a prática restaurativa, que é uma forma de resgatar e restaurar as relações entre as pessoas que frequentam a escola, a fim de reduzir conflitos. Então muitos professores, diretores e coordenadores estão trocando as punições por aproximação com os jovens, reunindo os estudantes em rodas de conversa e compreendendo seus problemas para que eles se identifiquem uns com os outros e reduzam os conflitos entre eles. Até porque muitos desses jovens fazem parte de gangues fora da escola, e a delimitação do território é muito importante para trazer uma sensação de segurança e poder a eles. O problema é que, quando entram em salas de aula, esses jovens perdem o direito de delimitar seus territórios, porque a escola é um espaço comum. E se não há uma política de conversa e conciliação entre a direção e os estudantes e entre os próprios jovens, os conflitos aparecem e se tornam quase impossíveis de resolver com rigidez e disciplina. A prática restaurativa, nesse sentido, visa identificar os problemas de convivência e, através do diálogo e da exposição de ideias e experiências, mediar a relação entre jovens e buscar uma convivência respeitosa entre eles. 

 

Por que o senhor defende a prática restaurativa na educação pública? O que a torna viável para remediar o problema do mau comportamento e da violência nas escolas?

Porque eu não percebo a viabilidade e nem a necessidade de trazer a carga hierárquica do exército para disciplinar os jovens. Para mim, a disciplina é feita em um outro contexto. Para mim, disciplina não é sinônimo de autoridade e hierarquia, e sim de diálogo, aproximação e compreensão entre diretores e estudantes e entre os próprios estudantes. E toda vez que se trabalha valores totalitários, de repressão e coerção, preparam-se pessoas que vão explodir ou reagir com a pressão em algum momento, além de construir uma geração mentalmente inflexível, com pouca pretensão e interesse ao diálogo, à arte e à criatividade. O olhar correto para o futuro da educação é aumentar o tempo de permanência na escola desses jovens que já vivem em regiões violentas, a fim de que eles nutram uma perspectiva de futuro mais atraente do que as facilidades em termos de conforto e remuneração oferecidas pelo tráfico. Esses estudantes precisam se sentir acolhidos na escola, principalmente através de atividades de contraturno, que mesclem aulas expositivas com práticas esportivas, que permitam aos jovens personalizar o espaço da escola e ajudar na manutenção da estrutura física ao mesmo tempo, como atividades de pintura a mão livre nos muros, por exemplo. A educação só é boa se servir para informar, esclarecer, dialogar e compartilhar conhecimento.